sábado, 16 de novembro de 2013

O Que Você é Meu?

Arte de Weberson Santiago



A segunda coisa que a Natália me contou, quando nos conhecemos, foi que tinha uma filha de dois anos (a primeira foi seu nome). Ela colocou como se qualquer possibilidade de intimidade partiria da aceitação da existência da Anelise. Logo de início precisei aceitar dividir a namorada. Tive de arrumar um lugar na minha vida para duas mulheres, sendo que eu procurava uma. Depois do estranhamento inicial (das duas partes, minha e da Ane), eu descobri as vantagens e os desafios de acompanhar o seu crescimento e ela descobriu que crescer em uma família dá segurança.

Após os quatro anos, Anelise começou a “fase dos porquês”, em que a criança tenta entender o mundo, quem ela é, como as coisas funcionam, que papel cada um tem na sua vida. E não é a toa que elas repetem tanto “por quê?”. É um mundo de coisas acontecendo o tempo todo, enquanto a criança tenta entendê-las. Nós assistimos ao improvável e ficamos responsáveis por explicar o inexplicável. E como uma criança compreende a complexidade? Com a simplicidade de sua capacidade de compreensão. Isto nos surpreende.

Nesta fase, Anelise começou a questionar qual era o meu papel na vida dela. Ela tem uma boa e frequente convivência com seu pai, o que fez com que ela tivesse a sensação de que não havia onde me encaixar em sua vida. A justificativa de que o relacionamento do seu pai com a Natália não deu certo pareceu não ter efeito nenhum para explicar a minha entrada.

Recorri a uma história familiar. Quando alguma situação de educação surge, sem muita reflexão recorremos aos métodos que usaram com a gente. Eu tenho uma irmã adotiva, a Sara, que chegou em nossa casa recém-nascida e que hoje é adolescente. Para explicar sua origem, meus pais contavam a história do castelo encantado onde os pais que queriam ter filhos buscavam uma. E a partir daí, essa filha se tornava filha do coração, e não da barriga, porque ela foi escolhida.

Fiz uma adaptação menos fantasiosa, na medida da inteligência da Anelise, para dizer que eu não sou seu pai, mas que meu amor é como se ela fosse minha filha e que, portanto, ela é minha filha do coração e eu seu pai do coração.

A partir de então ela passou a testar a metáfora. Quando estávamos só nós dois ela me chamava de pai, mas com uma entonação de teste. Como se ela estivesse chamando para ela mesma avaliar se cabia. Chegou a chamar na frente da Natália, mas com a mesma entonação. E morria de vergonha. Fazia como se estivesse brincando de casinha, de família. Quando algum desavisado se referia a mim como pai dela, a primeira coisa que fazia era esclarecer que eu não sou seu pai como se, sendo, inexistisse o outro.

Nesta história, o ponto mais crítico aconteceu quando nós três fomos morar juntos na mesma casa, quando ela estava quase completando cinco anos. A Anelise perdeu o lugar na cama ao lado da mãe e passou a ter que lidar comigo todos os dias, sem trégua. Foi um período de grande turbulência. Me rejeitou, não aceitava coisas que eu fazia há tempos, como levá-la na escola ou passar um tempo juntos. O dia mais difícil pra mim foi quando numa discussão em que ela enfrentava algumas regras que a Natália e eu colocamos, ela virou e me disse: “você não é meu pai!”.

Isso doeu, me senti rejeitado. Era como se ela pisasse em todo o carinho que eu havia lhe dado em três anos de convivência. Eu não consegui me calar, como outros padrastos quando ouvem essa frase. Respondi que não era mesmo e que eu não iria mais fazer as coisas pra ela. Na hora da raiva, respondi com a mesma imaturidade dela.

Tive dificuldade de digerir essa história. Precisei recuar um pouco para dar espaço para os incômodos dela e tempo para eu procurar uma nova maneira de exercer meu papel. Mas logo eu estava lá, nas brincadeiras ou ajudando na lição de casa, preparando algo pra ela comer.

Eu voltei atrás no que eu disse, continuei fazendo as coisas pra ela. Afinal, ela é a criança. Depois disso, passei a me preocupar menos com o título de pai e a curtir esses momentos em que exerço um papel de uma figura importante, acompanhando sua vida. Obviamente a ternura voltou ao seu nível anterior, das duas partes.

Na última noite em que ficamos juntos, enquanto fazíamos compras no supermercado ela me perguntou:

— Augusto, por que eu tenho vergonha de te chamar de pai? – assumindo o que me parecia óbvio.

— Não sei Ane, mas se um dia você tiver vontade de chamar, pode chamar. Eu não tenho vergonha de te chamar de filha.

O dia que ela entender que uma criança pode ter dois pais, que a existência de um não anula a possibilidade do outro ser presente, ela irá chamar. E mais importante do que chamar, é sentir.


 UM CAFÉ E A CONTA!
| Existe uma diferença entre sentir e expressar. Nem sempre expressamos o que sentimos. Nem sempre o que expressamos é o que sentimos.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2, 16/11/2013, Edição Nº 1276. 

5 comentários:

Priscila disse...

Que lindo texto. Parabéns pela a coragem de escrever, serve de muito exemplo a outros pais. Adorei.

arlete disse...

Parabéns Augusto, você está demonstrando que amor nunca é demais, só quem ama de verdade tem coragem de assumir, ótima crônica.

Unknown disse...

Me identifiquei um pouco pois estou numa situação parecida, porém numa fase um pouco mais chata. Inicio de adolescência, então vc imagina... coloca um toque de agressividade e rebeldia nisso, rs. O importante é isso, é sentir. E tem hora que a raiva bate mesmo porque parece que todo o seu amor e carinho foi em vão. Mas a gente sabe que não é assim. Palavras doem, mas atitudes são pra sempre. Brigada por dividir essa história, as vezes me vejo sem rumo quanto ao que fazer nesse tipo de situação. Não ocorre isso de "vc não é minha mãe", mas na hora da bronca me pego sem poder reagir quando vejo que ele rebate o que eu peço e minha vontade é de punir de alguma maneira, tirando o computador por algumas horas, etc. Mas dai surge a questão: "vc é chata, nem minha mãe faz isso..."
São situações complicadas e que por menos que a gente queira, machuca sim.
Bacana dividir essas histórias, Augusto. É bom ler algo quando a gente se identifica..

Augusto Amato Neto disse...

Fico feliz em ver que, ao me expor, pude tocar vocês de alguma forma. Com amor passamos por estas tribulações sem guardar mágoas. Obrigado pela leitura e pelo cuidado de comentar.

VAL disse...

Bonito texto, bonito o amor o carinho e a compreensão que de alguma forma você procura colocar na sua convivência e assim toná-la mais amena. Mas eu não me surpreendo tanto porque sei o quão profissional e inteligente que você é. Felicidades para os três. bjinhos.