sábado, 19 de outubro de 2013

Mais Pílulas de Infância

Arte de Weberson Santiago



Eram pouco mais de 9 horas da manhã quando saíamos de casa, num sábado, em direção ao centro da cidade. O céu coberto por nuvens acinzentadas. No nosso bairro ninguém na rua. Anelise, 5 anos, comenta:
— Nossa, parece que o mundo acabou!
— Não tem ninguém na rua, né?
— Esse céu é de filme de terror, parece que tá todo mundo dormindo nas casas.
Ensino que o céu coberto de nuvens chama-se nublado, ela se interessa e repete a palavra aprendida.  Conforme nos aproximamos do centro da cidade, avistamos pessoas nas calçadas. Anelise solta:
— Ufa! Tem um homem em pé ali, o mundo não acabou não!

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Ouvíamos um samba do Moyseis Marques. Ao final da música, o autor recita alguns versos. No meio da poesia Moyseis diz: “E em matéria de realidade, eu vou legal: tijolo por tijolo, degrau por degrau, tirando leite das pedras e construindo minha história”.
Ao final dos versos, Ane me pergunta:
— Augusto, como que tira leite de pedra se pedra não é vaca?
Respondi que tirar leite de pedra é uma expressão, que quer dizer fazer coisas difíceis ou chatas que não podemos deixar de fazer senão não conseguimos aquilo que queremos. Disse que existem pessoas mal educadas ou mal humoradas que temos que aguentar e tratar com educação, mesmo que elas nos tratem mal, pois isso faz parte da vida. Viver, às vezes, faz a gente enfrentar coisas ruins – concluí.
— Mas, Augusto, eu tenho uma vida tão boa! – retrucou.
— É verdade, né, Ane! Você tem uma vida muito boa! Aproveite... Um dia você vai ter que aprender a tirar leite de uma pedra.

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Anelise foi passar um fim de semana na casa da minha mãe. Na primeira noite, a Vó Eliana estava assistindo televisão acompanhada de um pratinho com uma deliciosa mexerica ponkan quando a Ane chegou:
— Vó, como você não me conta que tem mexerica nessa casa?
— Você gosta Ane? Eu não sabia...
— Eu não gosto, eu amo. Eu amo frutas, você não sabia?
— Não, não sabia, mas você gosta de todas as frutas?
— De todas, mas pensando bem, só não gosto de azeitona e amendoim. O resto das frutas eu como todas!

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Anelise: Augusto, já que você é o sabe tudo dessa casa, deixa eu perguntar uma coisa. Por que quando eu acordo tem essa casquinha no canto do meu olho?
Augusto: Enquanto a gente tá dormindo, durante a noite, vai saindo um pouquinho de lágrima nos cantos dos olhos.
Ane: A gente chora durante a noite?
Gusto: É só um pouquinho, para que o olho não fique seco. Essa casquinha se chama remela. Entendeu?
Ane: Entendi.
Gusto: A remela é uma lágrima que a gente não chorou.
Ane: Por que estava dormindo?
Gusto: Não, porque não teve coragem de chorar enquanto estava acordado.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Não tenho saudades da minha infância. Tenho saudades de viver com menos responsabilidades.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 8, 19/10/2013, Edição Nº 1272. 

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