sábado, 29 de setembro de 2012

Sentimento Escondido no Tumulto

Arte de Weberson Santiago



Em família, bastam alguns segundos. E tudo o que ia indo bem se torna uma grande confusão.

A Natália tinha acabado de acordar num domingo em que iria trabalhar e ido direto para o chuveiro. Eu havia levantado um pouco antes e estava as voltas com o café da manhã, imbuído da tentativa de aproveitar o pouco tempo que teríamos juntos naquele dia.

Até que a pequena Ane, ainda ensonada e já sabendo que a mãe iria trabalhar desde a véspera, foi até o banheiro, parou do lado de fora do box e disse:

— Mãe, eu quero tomar banho com você!

Da mesma maneira que eu queria arrumar o café para aproveitar a convivência, ela queria o banho para ficar um pouco mais perto da mãe. Acontece que ainda nem eram sete horas de uma manhã fria, e o banho poderia lhe render uma dor de garganta ou resfriado, preocupação excessiva e previsão improvável já que o amor previne doenças quando correspondido. Quando negamos o pedido, ela abriu o berreiro. Instalou a balbúrdia em nossos sentimentos apelando com o uso do choro e do grito. A desordem havia tomado conta. O que deveria ser o aproveitamento da única hora em família disponível se tornou um pesadelo. Birra e choro da parte de Anelise. Culpa de trabalhar dias e dias seguidos, e ainda estudar a noite, da parte da Natália. E eu tentando retomar o controle da situação, já arrependido de ser autoritário e não ter deixado ela tomar o banho com a mãe. Até tudo se acalmar, o relógio marcava a hora da Natália sair.

Foi a Natália dobrar a esquina e a Anelise estava calma e distraída enquanto contrariava as linhas retas das pautas do seu caderno com rabiscos coloridos. Foi então que eu entendi o que havia acontecido. Ela sabe muito bem ficar sem a mãe. A Natália trabalha bastante desde muito antes dela existir. Ela aprendeu a distância pouco depois que nasceu. A birra não era o sintoma da incapacidade de suportar a ausência. Era um manifesto de insatisfação pela vida exigir o contrário do que ela gostaria que acontecesse: querer passar um dia juntas.

O domingo que a Natália trabalha para mim já é uma segunda-feira. Eu disparo a preencher o tempo com períodos de trabalho e alguns momentos em família. Não é a mesma satisfação de quando estamos todos lá, fazendo as coisas que não couberam na semana, muitas vezes cada um num cômodo, mas sabendo que o outro está disponível dentro de casa. Já reparei que esse domingo em família é o que me renova a disposição pra começar mais uma semana. A Natália diz que sente o mesmo. Fica difícil deixar de lado a insatisfação dela ter que trabalhar no dia sagrado.

O mundo funcionava quando as coisas ainda não abriam aos domingos. Se eu pudesse, escolheria por todo mundo. O acesso as compras restrito até o sábado. O almoço da minha avó saía no domingo quando não tinha supermercado aberto. Ninguém precisava sair pelado porque a loja de roupas do shopping não estava disponível no domingo. Se eu conseguisse fechar o comércio noste dia, acredito que as pessoas seriam mais felizes, talvez até salvaguardaria o orçamento das famílias do endividamento. Os funcionários não atenderiam com tão pouco caso quando a vontade falasse mais alto e ele não quisesse estar ali naquele dia. Enquanto meu devaneio não se faz realidade, me sobra a opção de administrar os efeitos das ausências da Natália.

O que a Anelise precisa aprender é a lidar de uma forma diferente com a insatisfação de ver a sua mãe saindo pro trabalho no fim de semana. Aprender a aceitar a carência da companhia. Eu entendo bem o que se passa com ela. No começo do meu namoro com a Natália, quando ela tinha de trabalhar no domingo, eu cavava algumas brigas no sábado a noite. No dia seguinte, acordávamos separados por uma parede de travesseiros nos cantos da mesma cama, com o corpo em formato de parênteses contrariados, cada um pra um lado.

Eu prolongava a indiferença e o conflito economizando no bom dia. Enquanto sofria com os sentimentos da briga depois que ela havia saído, parei pra pensar porque eu fazia isso. Minhas atitudes não eram para para apaziguar os ânimos. Eu não queria entrar em acordo. Queria que a raiva dela que eu havia criado e nutrido me fizesse a companhia que ela não poderia me fazer. Entrar em consenso só aumentaria a saudade. Depois que eu percebi isso, passei a enfrentar o impedimento do amor de maneira menos infantil. Passei a cozinhar nos dias em que estou de folga e ela trabalha. Entre procurar a receita nos livros, comprar os ingredientes e preparar a comida, me distraio da saudade. Quando ela chega e encontra o jantar, vejo que consegui transformar toda a falta que ela me fez em temperos e na combinação de ingredientes.

A Ane precisa achar uma estratégia. Como a que eu arrumei para os momentos que sinto falta dela quando ela passa alguns dias na casa das suas avós, longe de mim. Eu roubo um CD da sua estante e coloco no meu carro. Durante a correria entre os compromissos de trabalho, ligo uma das suas músicas preferidas e imagino os percursos que fazemos juntos, cantando. É assim que eu não transformo mais as minhas insatisfações de saudade em confusões. Eu só não sei como eu posso ensinar isso pra ela sem que ela passe a dar falta dos seus discos preferidos.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Amadurecer não é deixar de ter sentimentos infantis. Amadurecer é voltar a ser criança para encontrar na espontaneidade a melhor forma de lidar com estes sentimentos.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 29/09/2012, Edição Nº 1219. 

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