sábado, 27 de outubro de 2012

Resgatar para Reviver





Se eu lhe contasse que a primeira foto retrata minha infância, o que você pensaria a meu respeito?

Poderia dizer que eu já demonstrava sinais de ser um escritor desde pequeno. Explorando o ambiente ao redor, pensaria que entre uma lauda datilografada e outra, exercitava minhas habilidades musicais no órgão ao fundo.

Isso se fosse eu que estivesse na foto. Na verdade é meu amigo Cleber Navarro, que resolveu tirar alguns retratos da gaveta e publicar no facebook.

Eu fiquei com inveja da foto. Achei a composição estilosa. Um ícone dos anos 90. A fruteira cromada com frutas de plástico típicas daquela época, a toalha de crochê igual a da mesa de jantar da casa da minha avó, a máquina de escrever azul calcinha.

Curti tanto a foto e seus detalhes que a mãe do Cleber, Dona Tita, me mandou uma toalha de crochê igual a da foto. Eu abri o baú da sala, peguei minha máquina de escrever laranja e tentei reconstituir a cena. Já que a primeira foto não era minha, resolvi produzir uma foto para ter saudade dos tempos de hoje daqui vinte e poucos anos.

Quando eu ficar velho, vou poder usá-la para contar aos meus netos que fui testemunha da passagem da máquina de escrever ao computador. Vou tentar descrever o que era um computador 486. Expor como era o uso da tecnologia antes do notebook. Florear histórias de um tempo sem tablet.

Talvez a lembrança tenha sido aprimorada depois da invenção da foto. A foto é o registro do que já passou, a prova do que aconteceu e salva em imagem o detalhe que possivelmente seria esquecido. Enquanto eu arrumava os objetos para reconstituir a cena, atraí pra perto a minha gata persa que se aninhou na cadeira da frente e junto veio a Anelise, que se encantou com a máquina de escrever:

— Pra que que serve isso que tá em cima da mesa?

Aproveitei a ocasião e ensinei a Ane a usar o equipamento e tirei uma foto da sua primeira experiência datilográfica.

As fotos que escolhemos para ocupar um álbum são aquelas que tem momentos que nos fazem sentir orgulho, que nos trazem de volta boas lembranças, que evocam sentimentos positivos e que registram poses que passam pela nossa própria crítica.

É mais fácil escolher os melhores momentos do que encarar as fotos que remetem as fases mais difíceis de nossa vida. Quem nunca teve vontade de rasgar uma foto? Picar o papel para ver se apaga a memória.

Eu já censurei algumas fotos, coloquei a reprovada atrás da permitida no saco plástico do álbum. A foto revela. Se meu contrangimento não pode ser revelado, eu escondo a foto.

No tempo das máquinas analógicas a surpresa era maior. Não havia como antecipar o resultado. Era impossível corrigir a imperfeição da expressão. Não cabia o imediatismo.

Quem sabe seja este o motivo das fotos de si mesmo não serem tão frequentes quando as máquinas fotográficas eram analógicas. O que faz alguém fazer pose na frente do espelho é a confirmação da sua imagem. É o resultado rápido na tela digital. É a possibilidade de mexer um pouquinho na pose, acertar uma mecha de cabelo. Isso se repete até que a foto atinja os critérios próprios, depois de uma dezena de fotos.

Fotos antigas costumam chamar a atenção. Percebo que o resgate é prazeroso para quem viveu a época fotografada e muito curioso para quem sequer havia nascido e não imagina como era a vida naquela época.

Não se contente em resgatar um retrato antigo. Divulgue-o. Multiplique a nostalgia. Conte histórias sobre o que acontecia naquele momento. Se puder, reconstitua a cena. Chame as pessoas da foto, volte ao mesmo lugar. Repita a pose. Reproduza a foto. Não tenha receio de parecer bobo. 

Reviver é atualizar o passado para curtir o presente.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Você percebe que já não é tão jovem à medida que se pega surpreso com o quanto alguém que você conhece cresceu na foto ou quando percebe pela imagem que viveu uma época que já não é mais.



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 27/10/2012, Edição Nº 1223. 

3 comentários:

Tina disse...

Muito bom, como tudo o que já foi escrito aqui! Parabens!

augusto disse...

você escreveu este texto pensando em mim... é assim que quero pensar e acreditar... é a minha cara... menino/garoto/moço/doutor da minha vida... a tia aqui, sei que posso me considerar uma tia chupeta, me emociona com os seus textos e esse, sem dúvida alguma, vai para a Foccus de dezembro. love you demais da conta... Glaucia Ayer

Augusto Amato Neto disse...

Tina, obrigado pelo comentário elogioso e pela visita!
Glaucia, essa crônica ilustra o que lhe motivou a criar a página Mococa das Palmeiras Imperiais: O PRAZER EM RESGATAR O PASSADO. Vejo que ela lhe tocou também pelo fato de ser escritora e de ter tido uma máquina de escrever (imagino eu), mas principalmente por ser uma pessoa sensível e humana. Carinho recíproco, beijos e mais beijos. PS: Os meus textos também são seus.