sábado, 7 de maio de 2011

Elasticozinhos

Foto do Arquivo Pessoal


Aderi à ordem da arrumação e resolvi dar o que não me serve mais e, o mais difícil, aceitar que devo me desfazer daquilo que guardei e não achei uso e do que não vejo mais finalidade no armazenamento. Em meio aos objetos largados fui encontrando elásticos. Não os amarelos de escritório, e sim os de cabelo. Elasticozinhos. Aqueles pequenos e coloridos, geralmente fosforescentes. Dos que se compra aos punhados e cabem no dedo.

Como um detetive seguia intrigado no rastro das pequenas amarraduras de cabelo e concluí que só poderiam ser da Anelise. Seus cabelos loiros e lisos não aceitam ficar presos por muito tempo. Os elasticozinhos vão escorrendo nos fios até cair no chão. Na pressa, é mais fácil para a mãe dela pegar outro ao invés de sair caçando o elástico perdido.

Anelise é filha da Natália, minha namorada. No dia em que nos conhecemos, ela me contou de sua maternidade. Eu confesso que achei interessante, por mais estranho que isso pareça. Depois compreendi que uma tendência a gostar de novidades disfarçou minhas resistências. Estas eu constatei depois de adiar a contar a meus pais sobre a existência da filha da Natália. Diante da indiferença deles perante a novidade, percebi que o estranhamento era meu, só meu. O receio da reação deles estampou minha dificuldade em pular de cara as páginas do namoro e passar para o álbum de família. Algumas situações trouxeram restrição à nossa liberdade, decorrências deste nascimento anterior ao nosso encontro, mas nada que boa vontade e paciência não venham resolvendo.

Não demorou muito para Anelise e eu sermos apresentados. Foi quando ela conheceu quem era o tal sequestrador de mãe. Depois que nos conhecemos, a mãe dela e eu, não nos desgrudamos mais e eu virei o ladrão. Se não bastassem o trabalho e a faculdade dela, eu apareci como o compromisso adicional, o motivo do abandono. Passei a ocupar horas daquela mulher que deveriam ser apenas dela.

Perto de completar três anos, a pequena está sob efeito da descoberta de que é gente ou, como se diz na psicologia, que tem um eu. Traduzindo em comportamentos: bate o pé por suas vontades, compreende muito do que acontece a sua volta mesmo com tão poucos centímetros de altura e gosta de deixar claro que já tem suas preferências. Mesmo assim, não nos restou outra opção. Tive de abrir mão de certo egoísmo. A Ane também.

Foi aí que percebi que o meu maior desafio não foi conquistar a mãe, mas sim a filha. A intimidade começou gradativamente em conversas pelo celular, passando pela liberdade de lavar sua mão e sua boca suja de chocolate, até um recente convite para nadar em sua piscina. A expectativa dessa progressão geométrica era a páscoa. Passamos juntos os três na minha família. Estava animado esperando por isso, preparei os ovos e fiz como meu avô fez com meu pai e meu pai fez comigo. Colocamos grama para o coelho e saímos para a missa. O coelho visitou a minha casa, deixou nossos ovos e comeu toda a grama.

Anelise é meu estágio para a paternidade. Estágio é fazer o trabalho de um profissional sem a responsabilidade e a recompensa desse profissional. O cargo de namorado da Natália me incumbe de ser paternal com a Anelise. Ser paternal sem ser pai. Mergulhei nesse estágio de cabeça, sem vergonha de curtir os passeios ao pula-pula, ao parquinho, ao circo e a praça em um fim de semana a três.

Foi ao nos conhecermos que a Natália me conquistou deixando recados quando passava os finais de semana na minha casa. Não na forma de bilhetes, mas pelos objetos deixados e esquecidos que foram encontrando seus lugares. Um creme que ficou pra trás significava um “sinta meu cheiro durante a semana”. Um sapato de salto perto da cama me dizia “este quarto tem dona”. A escova de dente foi a maior declaração de todas: “me casaria com você”.

Aonde vou penso nelas. Na prateleira do supermercado diante da garrafa pet e da minigarrafinha. Olhando para o chocolate de barra e o bombom. Fui pego pela publicidade em uma venda casada, e estou gostando de pagar o preço. Meu presente foi ter encontrado a namorada e ter ganhado uma miniatura de brinde. São minhas escolhas que me fazem pensar que estou em boas companhias, e com uma coleção de pequenos elásticos. Não é apenas no jeito de andar, na vontade de falar e na aparência que elas são iguais. Depois deste fim de semana na minha casa, encontrei uma peça do brinquedo de montar ganho no natal debaixo do colchão onde ela dormia. A pequena também deixa bilhetes. O significado deste: “gostei tanto do fim de semana que eu volto pra buscar a peça que eu esqueci”.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Encontrar espaço para o inesperado, enquanto nos acostumamos com o surpreendente.


Publicado no Jornal Democrata

Caderno Cultura, p. 3, 07/05/2011, Edição N° 1146.


Um comentário:

Rosa Maria disse...

Eta...esse foi bom!
Sâo pequenas ações que nos fazem lembrar o quanto somos privilegiados.....bjos