sábado, 21 de maio de 2011

Maduro Pra Cachorro

Arte de Weberson Santiago


Manhã ensolarada de domingo no trajeto entre as duas cidades. Passadas as curvas, o bosque e a grande subida que finda na árvore atingida por um raio, avistava a longa reta próxima à entrada da cidade. Com o defeito do astigmatismo que esmaece a visão, avistei o que pareciam ser três animais correndo no meio da pista. Pra quem já viu tatu, gambá, ratazana, lagartiú e até macaco na arriscada travessia, a lenta aproximação mostrou que dessa vez assistia a corrida dos cachorros. Pularam em cima de um carro e de uma moto, que desviaram pela contramão.

Enquanto os demais animais cruzam de uma margem para outra e nem sempre conseguem chegar do outro lado, o cachorro criado na rua tem vocação para carro esportivo. Quer demonstrar seus cavalos de potência, não se preocupa com o tamanho do trajeto e cai na estrada como se a língua para fora e o par de orelhas fossem o aerofólio perfeito, capaz de garantir o melhor desempenho na viagem.

O cachorro de rua é competitivo, encara o carro que passa ao lado como adversário da corrida. Usa o latido como ferramenta para desestabilizar o concorrente e leva o racha entre o animal e a máquina até o fim. É a corrida dos desiguais numa estrada sem fim, com o álibi do instinto para aumentar a velocidade e encarar os riscos. É uma questão de tempo para que a tentativa do desvio se torne frustrada e o atropelamento uma tragédia.

Quando identificamos os dois filhotes e sua mãe na pista, com o consentimento da Natália e da Ane, encontrei um lugar no acostamento que não existia e tratei de chamar a matilha para dentro do nosso carro. Os dois filhotes machos foram os primeiros a subir e a marcar minha bermuda bege com a terra laranja dos caminhos que percorreram. A pata registrada anunciava a marca desta história na minha estrada. A mãe se aproximava e se afastava como se não soubesse em quem confiar. Resistia, ora a seu impulso de liberdade, ora ao meu acolhimento no meio da sua aventura.

Os filhotes se acomodaram nos pés da Natália com naturalidade e conforto, até que consegui pegar a mãe pela barriga e colocá-la entre os bancos dianteiros. Eram brancos com manchas pretas e beges. Solucionado o resgate, outro problema surgiu. Tínhamos um compromisso e não tínhamos a chance de convidá-los para ir conosco. Resolvi deixá-los na cidade, não sem antes cogitar levá-los para casa. Foi aí que pintou aquela dúvida entre a adoção e o abandono. Cachorro é uma companhia, alegra a casa, nos protege de ameaças. Mas cachorro têm necessidades a serem satisfeitas, enquanto muitas vezes somos displicentes nos cuidados consigo mesmos. Não temos o direito de ter um cachorro que não possa receber o mínimo dos cuidados que precisa.

A urgência do horário do compromisso me fez optar pelo abandono em um lugar mais seguro. Depois do compromisso, a imagem do que eu deixei para trás repetidamente se fez constatada. Pesou o desamparo consentido. Parti sozinho em busca dos cachorros no lugar onde os havia deixado, na esperança de uma fidelidade em troca do salvamento. O duro foi constatar que meu papel foi ter alterado as suas trajetórias no passado, ao invés de fazer valer meu egoísmo de tê-los presentes no meu futuro. Não sabia se cabia no conformismo de possibilitar que um dono adotasse os três de uma vez ou se continuava a perambular nas ruas em busca de algum sinal dos seus paradeiros.

Em uma mistura de chateação resultante da desistência e um alívio de quem considerava que não daria conta de cuidar de um cachorro trabalhando até a noite, resolvi pegar o caminho da volta.

E na mesma estrada, enquanto ainda ruminava todo o episódio da ida, voltei o olhar para uma entrada de terra e avistei um filhote. Cheguei a duvidar da visão e, assim que pude, dei meia volta. Era uma fêmea da mesma cria, só que com a cara preta. Assim como a mãe e os outros cachorros estava suja e cansada. Tendo sido responsável pela separação e sem saber do paradeiro do restante da matilha, não me restou outra opção a não ser levá-la pra casa. Opção que foi de encontro ao meu sentimento ao viver toda essa sequência de acontecimentos.

Há alguns meses, ao completar três anos, Anelise pediu um cachorro. Argumentei com a Natália, já empolgada com a ideia, que era preciso que ela tivesse maturidade para ajudar nos cuidados, ao invés de considerá-lo um brinquedo cuja manutenção ficaria por nossa conta. Ela concordou em deixar para um aniversário mais tarde. Acontece que na estrada em meio à imaturidade natural da pequena e o meu fingir um excesso de maturidade, mora a questão do encontro e do afeto.

UM CAFÉ E A CONTA!

| A imaturidade não se mede pela altura dos pés a cabeça, mas pela intenção do alcance das mãos.


Publicado no Jornal Democrata

Caderno Cultura, p. 3, 21/05/2011, Edição N° 1148.

Nenhum comentário: