domingo, 29 de maio de 2011

Detalhes

Arte de Weberson Santiago


Costumamos atribuir o final de uma relação a um grande evento problemático e insustentável quando, na verdade, um final sempre começa de um problema pequeno. Um mínimo detalhe orgulhosamente encarado com indiferença e displicência. Os grandes e derradeiros fatos acontecem muito depois, quando acontecem e fazem parte do fim sem, na verdade, ter sido o começo do fim.

Algo aparentemente insignificante, que é ignorado. Geralmente, uma coisa que escolhemos não ver, preferindo esquecer o sentimento gerado numa espécie de preguiça em encarar as consequências de falar. Um evento considerado pouco importante, que mais cedo ou mais tarde volta a se repetir. E aí fica cada vez mais difícil deixar passar. Se a repetição leva ao conflito, a recorrência termina em desavença.

Quando comecei a namorar a Natália, foram poucos encontros para perceber que havia sempre um suspiro nas pausas e no final de nossas conversas. Logo passei a fazer a leitura do significado de cada suspiro. Fiquei especialista em leitura nasal, inclusive soltando palpites. Felicidade. Tristeza. Cansaço. E ela às vezes me corrigia. Quando estamos conhecendo alguém, vivemos a procurar sinais de seus sentimentos com uma disposição sem fim. Quando já me especializava na inspiração mais ou menos profunda, me deparei com a respiração travada. A ausência de sinais, a falta de informação, a cegueira do meu ouvido. Não sabia por onde procurar, já que ela engolia os suspiros.

A expectativa de que a disposição continue grande faz com que o corriqueiro e o repetitivo, mesmo que cuidadosos, percam o valor com o passar do tempo. E não deixamos de fazer o que o outro gosta, mas evitamos ver de perto o que a gente não gosta. A acomodação é a aposentadoria do comportamento de amar. Resultado de pensar que a relação é um plano de previdência e que chega um dia em que se anuncia a aposentadoria. Há quem pense que esse dia é o casamento e há quem pense que esse dia é todo dia. E a relação tem que suportar a ausência de atitude esperando o benefício somente da parte do outro. Quem esquece que qualquer relação funciona em cima da reciprocidade desfaz a relação de correspondência. De um pequeno desleixo surge uma grande confusão.

Difícil é suportar a ausência somada do orgulho. Como quem passa a noite isolado, mesmo dormindo acompanhado na cama, e acorda mudo. Ou quando se dorme separado, um no quarto e o outro na sala e encontra a companhia daquela dor chata que instala o nó na garganta. Ninguém consegue ser mais emburrado do que eu. Sou invadido por uma carranca. Assusto qualquer um sem dizer uma palavra. Ai de quem chega perto.

É fácil fazer uso inadequado da individualidade. É colocar o eu como prioridade diante de qualquer coisa. Ter preguiça de pensar como o outro e de entender o sentimento do outro que aparece disfarçada na indisposição ao diálogo. Há momentos em que preferimos alimentar a dúvida ao invés de se comunicar. Escondendo o medo de que as palavras que saiam da boca sejam destruidoras, prolongando a dor. Preservar excessivamente esta individualidade é engordar um monstro. O monstro da insegurança. E como fingimos que não vemos a gestação, ficamos absortos diante do parto. Quando se decide olhar, estão os dois separados por um grande abismo.

Por vezes, este abismo se dá pela distância imposta pela rotina que impede de estar junto. Em muitas situações, tudo se deve a distância física que separa os parceiros. Há situações em que a presença física é o motivo do conflito. Então, a discussão se torna uma briga. E da briga se opta pelo afastamento. Um falso afastamento, em que o parceiro não sai do pensamento e mesmo assim a gente bloqueia o contato, não atende ao telefone, atua para demonstrar indiferença. Até que tudo isso cansa. E a distância perde a razão de existir e a gente busca o reencontro, ainda que sem garantias de qual será o resultado de uma conversa.

Pronto. Não há outro caminho a não ser discutir a relação. Tentar não gaguejar ou variar o timbre de voz para não demonstrar uma fraqueza. Segurar para que o suspiro engolido não escorra em lágrimas. Ouvir e abrir mão do egoísmo. Ceder e abrir espaço para o entendimento. Reconhecer o erro, aceitando a cobrança. Gasta muita energia, custa revogar toda uma série de explicações criadas. Deixando de lado as histórias inventadas para tampar os buracos e caindo na realidade da vida conjugal.

Quando a relação é posta à prova, possíveis são dois caminhos. O da reconciliação e o do rompimento. Cada um muda, a relação muda e recomeça. Ou termina.

Aprendi em casa que uma relação precisa ser constituída no amor. Aprendi com a vida que um amor precisa ser construído em cima da verdade de cada um, até que elas se tornem uma única verdade.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Pôr fim de relacionamento não pode ser vivido como uma forma de prudência. Começar já foi imprudente.

Publicado no Jornal Democrata

Caderno Cultura, p. 3, 28/05/2011, Edição N° 1149.

Um comentário:

L. Fiscina disse...

AO TERMINAR DE LER SEU TEXTO FIQUEI COM A IMPRESSÃO DE QUE ELE PODE SER TRADUZIDO OU MESMO SINTETIZADO NA CONEXÃO DE DOIS TERMOS MUITO BEM USADOS POR VOCÊ, FORMANDO UMA METONÍMIA MUITO AUTÊNTICA A PARTIR DO USO ADEQUADO QUE VOCÊ FAZ DA ASSOCIAÇÃO DE DUAS PALAVRAS, CONTRASTANDO OS SENTIDOS E SUAS FUNÇÕES NA BELA E POÉTICA CONTIGUIDADE SEMÂNTICA EXISTENTE ENTRE O OUVIR E O VER, ESCUTAR E OLHAR, PARECE, ENTÃO, QUE TUDO ACABA OU COMEÇA NA CEGUEIRA DO OUVIDO!