sábado, 14 de maio de 2011

O Bahiano

Arte de Weberson Santiago


Vou pelo caminho banal nesta crônica ao escolher meu personagem naqueles que passam desapercebidos, escondidos por detrás do cotidiano. Estava no meu horário habitual de saída do trabalho de manhã, indo em direção ao carro, quando o Bahiano me abordou:

— Tá indo pra onde, jovem?

— Pro centro. Onde precisa ir, Bahiano?

— Na assistência técnica de geladeira, perto da saída. Tenho que ver se tem essa peça para trocar na geladeira de casa.

— Entra aí que eu te deixo lá.

No caminho, perguntei se ele havia nascido na Bahia, questão óbvia para quem tem o apelido. Surpreendente foi a resposta, que me fez descobrir que ser chamado de Bahiano não significa de ter nascido na Bahia. Pode ser mais do que isso, pode ser sinônimo de Nordestino. No caso dele, apelido para quem morou algum tempo na Bahia.

Enquanto me dava detalhes sobre a motivação das mudanças, ele diz:

— Tá bom aqui, jovem! Pode deixar que eu dou um chego lá! Aí você vira aqui e vai pro centro.

— Eu te levo, Bahiano.

— Fica tranquilo, neguinho, aqui tá bom! – disse, aproveitando a esquina para descer do carro.
Ele não compreendeu que eu me interessava pela sua história e que queria fazer na carona aquilo que a sucessão dos dias de trabalho não me permite. No meu trabalho como psicólogo organizacional sou obrigado a priorizar o caso com queixa, seja de quem for a reclamação. Isto me impede de saber da história daqueles que não sinalizam um problema na rotina.

O Bahiano tem pontualidade inglesa, chega todos os dias no horário. Carrega uma pasta na mão com postura de executivo. Veste sempre uma calça preta e uma camisa polo branca ou cor de vinho quando chega na empresa, sempre com os cabelos grisalhos devidamente penteados para trás. Só depois de tomar o café, veste o uniforme. O seu bom dia é um privilégio, remete a voz do locutor radialista no primeiro cumprimento recebido por quem madruga.

Mesmo esbanjando habilidade vocal, não há dúvida que cumpre aquilo que é sua especialidade. Se não fosse a forma como ele faz o seu trabalho, aqui a crônica cairia no senso comum. Vou repetir o chavão, mas como quem escreve a história do excluído. Se todo porteiro é Paraíba, o Bahiano trabalha na manutenção. O nome do cargo é serviços gerais. Posto recusado com brado de revolta por alguns que pensam que serão contratados para fazer qualquer coisa. Na verdade, são contratados para fazer muitas coisas. E quem sabe fazer muitas coisas sempre é imprescindível, mas nem sempre valorizado.

Soltou o cabo da panela? Leva pro Bahiano! Estragou a tesoura de jardinagem? O Bahiano conserta. Ferro, solda e parafuso? Idem. Engana-se quem pensa que são apenas trivialidades e miudezas. É na oficina que tem cara de bagunça que ele produz as engenhocas que são verdadeiras soluções na vida de quem repete o trabalho todos os dias. O alçapão do registro era um desafio para a senhora de meia idade. Uma única ferramenta construída por ele levanta a tampa de ferro e abre o registro sem exigir agachamento. A durabilidade da lona do toldo era menor, pois vivia batendo quando abaixado. Algumas soldas depois e o cano lona se encaixa e não bate mais. A simplicidade da ideia que implementada é economia inteligente. Fui pegar sua trena emprestada na última semana e acompanhei de perto ele construindo um de seus inventos. Carretéis gigantes giratórios para recolher as raias da piscina de cinquenta metros.

Por isso estou contando os dias para a próxima festa de confraternização. Quero tomar uma cerveja com o que eu considero ser o verdadeiro herói. Aquele que tem orgulho da graxa que suja a roupa no final do dia, pois ela mostra que foi um dia produtivo. Que recebe as pessoas na sua oficina com o mesmo afeto que eu recebo nas minhas poltronas almofadadas. Que se orgulha da ser Bahiano sem ter nascido na Bahia. Que carrega nas rugas do rosto o sorriso e na pasta a certeza de ser responsável pela manutenção da vida dos outros.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Motivação é o contrário da procrastinação. É fazer hoje o que poderia ser feito amanhã. É trocar a desistência temporária pelo ímpeto da realização. E fazer com excelência desde o mais simples até o mais complexo.


Publicado no Jornal Democrata

Caderno Cultura, p. 3, 14/05/2011, Edição N° 1147.

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