sábado, 30 de abril de 2011

Futebol de Várzea

Arte de Weberson Santiago



Bem longe dos jogos televisionados e das reportagens irreverentes do jornalismo esportivo há muita bola rolando nos gramados por aí. A bola bate na trave feita de cano de PVC e a molecada se joga no chão na última chance perdida. Tem time esperando do lado de fora, avisando que o tempo de jogo acabou.

A disputa pela bola compete com a disputa pelo campo. A espera pela vez é o final da espera pela semana passar e mostra a vontade do jogo chegar. É o futebol de várzea que acontece ali, virando a esquina no campo gramado, ou que se contenta com a terra batida no final do bairro e que, na última opção, recorre ao asfalto da rua pouco movimentada. Vale tudo no improviso. Se não tem cano, o gol é definido com o chinelo mesmo.

E é ali, no lugar mais próximo da onde a criança mora, que começa uma história de afinidade entre um ser humano e uma bola. Na brincadeira aprende-se a combinar a velocidade com a habilidade na disputa entre times. Em nome do pé, em nome do time e em nome do espírito esportivo que inventou o futebol brasileiro.

Inventou de formar craques em todos os lugares em que a bola pode rolar. E inventou o futebol dos contratos milionários e dos craques saídos da periferia campeões em exportação. Esperam encontrar pouco das mazelas da favela, mas se deparam com a saudade de um povo afetuoso. E voltam ovacionados e acolhidos. São heróis de suas histórias em virtude da sua trajetória.

Em meio à multidão de boleiros é preciso se destacar. A maneira mais utilizada para chamar a atenção, tanto pelos amadores quanto pelos profissionais, é o nome. Se o de batismo não foi criativo, um apelido diferente já é o suficiente. Uma maneira alternativa de se destacar no futebol é o corte de cabelo não convencional.

Mas é longe do profissionalismo que reside a beleza do futebol. O que encanta não é o futebol arte, e sim o futebol artesanato. Aquele feito com as mãos da ingenuidade e que é capaz de esculpir a beleza em movimentos de encontro entre o pé e a bola. O maior valor artístico do futebol é a sua matéria prima humana. Quer a posição que ocupem em um jogo de futebol, dentro ou fora de campo, são todos seres humanos.

No campo do futebol não há espaços para indecisos. Até quem deve ser neutro, ao apitar, escolhe um time em detrimento de outro. E dos indecisos, o menor deles é o torcedor. O que caracteriza um torcedor é acompanhar fielmente o time eleito. É o valor do pacto, a prova da parceria total, passando pelo treino em aprender a lidar com as glórias das vitórias e os fracassos das derrotas.

Somos o país do futebol, mas pesquisas sobre a quantidade de torcedores por time mostram que um quarto da população não torce por time nenhum. Considerando que existem pessoas que definem seu time, mas que nunca assistem aos jogos ou torcem diante de um jogo, eu gostaria de saber o que pensam estes milhões de não torcedores.

Mas não é só o não torcedor que é incompreendido, muitas vezes os próprios torcedores se sentem incompreendidos. Discordam da escalação, não entendem o motivo do atual esquema tático e culpam o técnico pelo resultado das derrotas consecutivas. Por falar em técnico, o mais valorizado é técnico performático. O que não se contenta em ocupar o canto do banco. Precisa gritar, gesticular e até ameaçar invadir o campo enquanto o jogador se faz de surdo e a televisão coloca tudo em legendas. Pelo menos o técnico tentou mudar a realidade no grito enquanto era tempo.

Aquele que sai de casa no final de semana e vai até o campo para ver seu time jogar é o verdadeiro torcedor. Não se satisfaz com as dezenas de câmeras se o jogo é transmitido e prefere com os próprios olhos. O fato é que me peguei admirando aquele apaixonado que se põe na arquibancada para assistir ao jogo e não se contenta com a imagem que tem da plateia e, por isso, coloca o rádio de pilhas no ombro. Fica tão emocionado durante as jogadas que não acredita no que está vendo, precisa que alguém narre no seu ouvido o lance acontecendo.

A presença das mulheres não é novidade na torcida e elas competem em igualdade com o mais fiel dos homens torcedores. Porém, existe algo capaz de criar o maior conflito entre homens e mulheres no que diz respeito ao futebol. Não é o amor por times adversários, é a famosa pelada. Espanta a quantidade de casais que se desentendem no sábado à tarde, conflito precipitado pelo futebol com os amigos. Da primeira vez, ela aceita ficar sozinha, até que ele chega bêbado na volta. E ela não entende porque pelada é sinônimo de gelada e enxerga a turma do futebol como a quadrilha a malsinar os bons maridos e a estragar o seu sonho de sábado. Até quem não bebe e somente gosta de jogar acaba sofrendo certa pressão.

Se é o universo do futebol que registra esta crônica, ela tem de terminar no centro deste universo, no qual os vinte e três em campo miram para definir sua órbita. Todos querem a bola e correm o quanto for necessário para isso. Não querem somente a sua posse, mas levá-la ao encontro da rede. A bola é centro das atenções de milhões de expectadores, dentro e fora do campo, cada um defendendo a sua cadeira cativa neste mundo em que a gravidade é sempre a inimiga e o quase é sempre uma decepção.

UM CAFÉ E A CONTA!

| No estádio da vida não há cadeira cativa.

Publicado no Jornal Democrata

Caderno Cultura, p. 3, 30/04/2011, Edição N° 1145.

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