domingo, 5 de junho de 2011

A Rosa do Profeta

Arte de Weberson Santiago

Caixa de texto: Arte de Weberson Santiago


Na ponte entre o Augusto Amato (92 anos) e o Augusto Amato Neto (27 anos), a Roseira mais frondosa já não embeleza mais o caminho. Perdemos nossa Rosa aos 88 anos. Brotou no caminho do Augusto Amato quando ele tinha 20 anos, se enamoraram por sete e viveram o casamento por 64. Um amor que soube atravessar as estações e nunca deixar de florescer.

Há três anos, descobrimos uma insuficiência cardíaca da Rosa, a qual investigada profundamente revelou uma beleza da vida. Suas três principais veias de circulação encontravam-se 100%, 70% e 40% entupidas, respectivamente. No entanto, as veias menores foram gradativamente se expandindo e deram a volta pelo lado externo do coração para garantir certa circulação. O médico especialista estimava que aquele quadro se desenvolvia há pelo menos 10 anos.

Embora belo, o episódio revelava uma impossibilidade de cirurgia e um prognóstico desfavorável. Em família, decidimos apoiá-la para que vivesse feliz o quanto fosse. Dona de uma energia de vida descomunal, sua porção de alegria era capaz de contagiar o mais sisudo dos mal-humorados. Era realista, mas ao mesmo tempo otimista. Agia na vida como se não existisse empecilho para aquele que tem vontade, e como se não faltasse resposta para quem tem a coragem de formular a pergunta.

Professora, ainda jovem lecionava aos filhos dos Industriais e Comerciantes Mocoquenses no Externato Santa Terezinha, aberto na própria casa do seu pai. Seus alunos eram os primeiros colocados no concurso para o Ginásio. Na Escola Oscar Villares, fundou uma cozinha para as aulas de Economia Doméstica e era rígida nas aulas de Trabalhos Manuais. Era o Taylorismo da Dona de Casa, em ritmo de fábrica na cidade de Mococa.

Na década de 70, encarava a estrada até Ribeirão Preto no volante para a então divulgada Psicoterapia. Reorientou sua vida em sessões com uma Psicóloga, demonstrando seu pioneirismo. Com sua filha, Rosa Maria (Maí), trouxe os natais mágicos de luzes e árvores de Natal para a cidade de Mococa na Ponto Verde Objetos, hoje Das Rosas Decorações. Como matriarca, foi verdadeiramente excepcional. Esteve incondicionalmente presente, cuidando, incentivando e reconhecendo aqueles que ela amava. Ela era a maior Roseira de nosso jardim.

Com a força desta história e com o significado simbólico de ser Augusto Amato Neto, fiz questão de ser presente na vida dela como ela foi durante toda a minha. Uma vez ouvi de um poeta que tenho cara, postura e voz de Profeta. O Profeta é aquele que sabe retirar a sabedoria da experiência do vinho, sem perder a estrutura do sangue.

Ocorre que o defeito do profeta é olhar pra cima com a mão no queixo e querer antecipar o que está por vir. É o vício de tratar o sentimento como se fosse o cliente e antecipar aquilo que lhe trará insatisfação. Com meu primo mais velho, Alexandre, instituímos o almoço na casa dos nossos avós toda sexta, assim que voltamos a morar em Mococa. E naquela mesa, toda semana, adubamos a Roseira e não deixamos de colocar água no Cravo.

Mesmo com o diminuir do fôlego, com a fraqueza da circulação e com o excesso de remédios, passamos aquele que foi o melhor de todos os Natais. Passado o ano novo, o Profeta foi tomado por uma aflição crescente a cada dia, mas errou na previsão. Não soube ao que atribuir a agonia que o havia escolhido. E sete dias antes da morte da Rosa, sentou pra discutir o futuro com a mulher. Sem se dar conta, quis ver como andavam as raízes das duas belas flores que tem alegrado o jardim da sua vida. Agindo como se antecipasse a perda da grande Roseira, o Profeta ignorava a própria profecia.

Houve tempo pra o namoro florescer e pra Rosa se despedir. Avisou o Profeta sete dias antes de partir que precisava arrumar um jardineiro, e que este ano inteiro em que ela mandava o dela cuidar do seu jardim, já havia sido a dependência suficiente. Internada, passou uma noite acompanhada de seu terceiro e último filho, Augusto Amato Junior. Acordou as duas da madrugada e passou duas horas revendo sua vida enquanto contava histórias. Mais uma vez precisou de um motivo para continuar adiante. Disse que queria rever o seu pai, enquanto aceitava a partida.

No dia seguinte, recebeu a visita do Profeta. Pediu que ele sentasse ao seu lado e segurou forte a sua mão. O Profeta esteve firme nessa missão, conseguiu lhe retirar alguns sorrisos, beijou muito seu rosto enquanto disfarçadamente puxou o ar o mais forte que pôde, na tentativa de não se esquecer do perfume da Rosa. O cravo passou toda a tarde ao seu lado e reiterou a ela o amor de 72 anos. O ar começou a lhe faltar no fim da tarde daquele dia, precisou ir para a UTI. Foram 48 horas respirando por aparelhos e se comunicando por bilhetes com a família.

E como ela sempre quis, no ritmo mais perfeito da cadência da vida, na última sexta, às 21h30min seu coração parou de bater. Partiu a Rosa do Profeta. Na sua última lição como professora da arte da vida, fez questão de ensiná-lo todos os segredos de como cuidar do seu próprio jardim. Foi lendo seu livro de receitas que o Profeta aprendeu a ser padaria dentro de casa. E desta passagem, ao decifrar a profecia, concluiu o Profeta: agora que a Rosa não faz mais parte do nosso jardim, será sempre regada e estará sempre florida em nosso coração.


Necrológio de Rosa Scarparo Amato («28/10/1922 – V04/02/2011)


UM CAFÉ E A CONTA!

| As melhores lembranças que deixamos são aquelas que são resultados de nossa presença verdadeira e cuidadosa.

Publicado no Jornal Democrata

Caderno Cultura, p. 3, 04/06/2011, Edição N° 1150.

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