sábado, 6 de setembro de 2014

Onde Mora a Minha Casa, Habita a Minha Alma

Arte de Weberson Santiago



Gostaria de morar num bairro onde as pessoas não esperam o poder público arrumar a praça. Um lugar onde cada morador retira uma muda de seu quintal e planta no espaço coletivo. Sonho com um jardim coletivo para além dos muros que separam as casas, que encante a ponto de um morador doar um banco para quem quiser contemplar o lugar. Um lugar conservado por diversos pares de mãos, em que não haja coragem para sabotar, raiva para destruir, apenas vontade de colaborar com mais uma planta ou com a iniciativa de arrematar o trabalho com um comedouro que mantenha os pássaros por perto sem apelar à gaiola.
Gostaria de morar numa bairro que tivesse um mercadinho daqueles que vendem de tudo, mas por um preço justo. Onde eu possa recorrer quando tiver chegado do supermercado e constatado a falta de um ingrediente para conseguir cozinhar um prato. Um mercadinho com caderneta de papel com meu nome na primeira linha da folha e com os valores gastos nos dias do mês abaixo. Para que eu possa receber meu salário e ver o dono rabiscando os valores quitados.
Gostaria de morar num bairro onde existisse uma casa agropecuária para eu comprar ração para a nossa gata, comida para os nossos peixes, painço pro nosso periquito australiano e semente de girassol para a nossa calopsita. E lá encontre a ferramenta que se fizer necessária para um conserto ou manutenção e que ainda não exista em minha caixa de ferramentas. Um lugar onde eu possa confiar nas dicas sobre qual dos produtos deva escolher e que me ligue quando tiver acabado de chegar o que eu procurei e não tinha mais.
Gostaria de morar num bairro onde no fim se semana passa um sorveteiro apertando a buzina, que aos meus ouvidos vai aumentando de intensidade e sinaliza que ele se aproxima do meu portão com seu carrinho cheio de sorvetes. Para que eu possa levantar correndo a procurar por moedas espalhadas em potinhos, bolsos, carteiras e no coxim do carro e encontre um valor suficiente que possa alegrar nossa tarde com um trio de picolés, antes que a buzina vá se distanciando e vire a esquina.
Gostaria de morar num bairro onde as pessoas trocam aquilo que tem em excesso em suas despensas. Que eu ganhe mangas do quintal e a Natália oferecesse um pedaço de bolo que acabou de assar como expressão do nosso agradecimento.
Gostaria de morar em um bairro onde eu possa oferecer a penca da bananeira do meu quintal que pende pro terreno do vizinho à sua família. E como retribuição, ele permita que os galhos da sua primavera branca ultrapassem e invadam a minha fachada e deixem o semblante da minha casa mais feliz.
Gostaria de morar num bairro com um morro onde exista um Cristo Redentor – ou “Rebentor” como dizia a Anelise quando era menor – de braços abertos para o novo dia, espiando lá de cima, com fé na minha partida para mais uma jornada e abençoando meu retorno.
Gostaria de morar num bairro onde há uma sinfonia de galos na alvorada, para que eu possa acordar lentamente conforme eles forem cantando nos quintais e galinheiros da redondeza. Prefiro o canto dos galos ao despertador que imita um galo eufórico sem intervalos.
Mas eu moro num bairro assim. Por que todo mundo não pode morar num bairro assim?
Por que nem todo mundo tem como sonho viver em um bairro assim. Sem sonho não há comprometimento em construir uma nova realidade. Um sonho compartilhado é o projeto de uma nova realidade, em que basta que o primeiro tome a iniciativa para que os outros imitem a atitude. E a nova realidade começa a tomar forma e funcionar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Enquanto houver lugar para os relacionamentos humanos nos bairros da cidade, haverá a esperança da cooperação superar o individualismo em nossos espaços de convivência.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 06/09/2014, Edição Nº 1321.

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