sábado, 10 de setembro de 2011

Marcas de Tinta


Arte de Weberson Santiago



Uma das minhas manias é a do desenho e da pintura.
Na escola costumava dividir as páginas do caderno, reservando uma parte de cada folha para minhas anotações em forma de rabisco. Não registrava as explicações da professora em palavras, desenhava o que eu entendia. Achava o espaço na página um desperdício quando os escritos não ocupavam toda a extensão da linha. Se sobrava um espaço, cabia um desenho.
A mania não ficava apenas na escola, boa parte do meu tempo livre em casa era gasto nos papéis. Na contramão da infância, ao invés de me dependurar na goiabeira, desenhava como eu via a árvore. Esperava o aniversário para ver se ganhava um papel diferente ou uma nova caixa de lápis. Logo avancei do desenho para a pintura.
Minhas aventuras no mundo das tintas tinham suas consequências. A cada semana, quando minha mãe chegava do trabalho, eu tinha manchado mais uma toalha do seu enxoval. Ela esperava perder seus jogos felpudos com as iniciais do casal bordadas pelo uso e ficava brava com as manchas permanentes. Naquela época não havia tira-manchas efervescente.
Ela apelava para a “Sebastiana Quebra Galho”, um manual com segredos para resolver os problemas comuns à maioria das donas de casa em um tempo em que não se podia recorrer ao Google. Não havia receita mágica que tirasse a tinta a óleo da toalha. Minha preferência eram as toalhas pequenas que compunham os jogos de antigamente. Eram menores que as de rosto e eram perfeitas para tirar o excesso de tinta dos pinceis. Custaram as toalhas de minha mãe, mas foi assim que eu desenvolvi a minha criatividade.
Como educar é passar adiante as coisas boas que aprendemos na vida, resolvi ensinar o que é a pintura pra Anelise. Comprei um painel de vinte por vinte centímetros planejando aquela que seria a primeira obra de arte da pequena.
No sábado, quando ela fez o convite para brincar, disse que havia preparado uma atividade diferente. Vamos pintar! - disse. Ela se empolgou. Separei uma dúzia de tintas de diversas cores, peguei três pinceis e um perfex, para prevenir a preservação das toalhas. Enquanto eu separava o material, Anelise tomou a iniciativa de buscar uma cadeira para pôr ao lado da sua. Como todo bom aprendiz, demonstrou disposição a aprender.
Ensinei que ela deveria usar uma cor de cada vez e que, enquanto ela escolhesse a próxima cor, eu lavaria o pincel. A primeira lição seria livre, sem nenhum desenho definido. Me segurei para não fazer por ela aquilo que ela achava complicado, pois é aí que está o valor de uma nova atividade. A descoberta e a superação das dificuldades. A dela foi manusear o pincel pela primeira vez, mas depois da metade já havia percebido que o vai e vem das cerdas era mais eficiente que o movimento circular para cobrir o branco e que quando a tinta acabava de um lado, bastava virar o pincel e usar a tinta que ficava do outro.
Ia mostrando onde os excessos se acumulavam na tela e apontava onde o branco do fundo ainda aparecia. Ela se incomodava quando a mão ou o braço se sujavam de tinta e eu a acalmava dizendo que depois a gente iria lavar. Durante todo processo, ela perguntava se estava ficando bonito. Queria um incentivo para continuar. Como fazia pela primeira vez, a avaliação tinha de vir do outro.
Anelise se envolveu tanto que, quando cobriu toda a tela com as cores vivas e alegres que escolheu, queria pintar tudo de novo por cima. Aí eu tive de contê-la. Disse que se pintasse mais, iria cobrir as cores bonitas que havia usado. Sugeri que chamássemos a sua mãe para ver como tinha ficado. A Natália achou lindo. Eu também. Sua obra abstrata tinha uma harmonia de cores.
E diante da tela em branco ela experimentou a responsabilidade e a liberdade de cobrir com as cores, de experimentar um novo comportamento, o da pincelada, com a ajuda e a possibilidade de aprovação da sua família. Ela entendeu que produzir e criar custa tempo e disposição, que faz sobrar bagunça e sujeira, mas vale a pena. A primeira coisa que ela perguntou quando acordou no domingo foi se a tinta já havia secado. Fomos ver e ela se certificou que estava seco colocando a mão na tela. Confiante com o resultado, ela emendou a pergunta:
Qual parede a gente vai colocar?

UM CAFÉ E A CONTA!
| O pincel se lambuza da tinta para percorrer a tela. O pintor se suja de tinta para ir além do que é visível na vida.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 10/09/2011, Edição Nº 1164.


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