sábado, 3 de setembro de 2011

Efeitos do Defeito

Arte de Weberson Santiago



Insistimos em acreditar que insinuação sexy com direito a cruzada de pernas, olhada fulminante ou piscada são maneiras de sugestão, enquanto o que seduz é a imperfeição. A grande arma de sedução é o defeito. Uma mania que soa como convite. Que apela para descobrir de perto, que incita a revirar o defeito por todos os lados e confiar na sua repetição.

Tenho um amigo que se apaixonou quando assistiu uma mulher fazendo as unhas no meio do expediente. Disse que ela era tão graciosa que podia usar a reunião para cuidar de sua aparência, já que aquilo não era abuso para quem tem um dia corrido de trabalhos e estudos. Não adiantou o questionamento do lugar apropriado. Para ele, continuar mantendo sua beleza encantadora não precisava de lugar.

A mania começa a soar como persistência. O defeito que se repete passa a ser entendido como correspondência. É de um sorriso no rosto, de uma coincidência de datas, gostos e músicas que precisa a aproximação. Qualquer tipo de esbarrada é confirmação da existência do desejo. Sempre por vias tortas, numa estrada cheia de curvas, com destino incerto.

Descobri outro dia que meu caderno era cobiçado. Me ver escrevendo suscitava nela a pergunta: o que será que ele tanto escreve naquele caderno? Cada hora passada na frente dela com os olhos voltados para o bloco de papel evidenciava o quanto ela esperava a mania. Queria espiar as palavras para ver o mundo com os meus olhos. Descobrir minhas reticências, despistar algumas vírgulas. Estar escrita no amanhã. Ninguém ousa reprimir a iniciativa do diário, mas não suporta saber da existência do segredo.

Luiz Fernando fez todas as vontades de Valéria no casamento. Ele me confessou que gastou o dinheiro de uma viagem pra Europa na festa, para que ficasse do jeito que ela queria. Não fez valer sua vontade de usar um fraque porque ela não deixou. Acontece que não foi aí que Valéria confirmou que havia casado com seu grande amor. Na primeira semana morando juntos, Luiz Fernando saiu do trabalho e fez compras no supermercado. Quando chegou a hora do jantar, Valéria questionou Luiz se ele queria comer. Ele disse que não estava com fome e que ela poderia comer se quisesse. Valéria fez um purê de batatas e comeu com carne.

Enquanto ela tomava banho, começou a sentir um cheiro de comida. Ainda de roupão foi conferir o rastro fumegante pela casa e encontrou Luiz Fernando sentado na mesa diante de uma porção individual de lasanha. Valéria pegou pesado, fez um drama pelo planejamento do boicote em dividir o prato, sentar a mesa e bater um papo. Luiz ficou constrangido e ao mesmo tempo achou exagero, mas decidiu que não iria mais planejar uma refeição sozinho.

Valéria ficou chateada, foi deitar triste e ao mesmo tempo aliviada por ter apontado o personalismo do marido. Antes de dormir, enquanto pensava no ocorrido ela chegou a uma conclusão. Teve a certeza de que o casamento havia sido a coisa certa. Como em outras vezes, ele reconheceria o efeito de seu defeito. Afinal, não é de uma hora para outra que se aprende a pensar como dois. Isto se aprende na prática de uma vida a dois. Valéria passará o resto da vida esperando que o individualismo se repita para ela consertar o defeito. Luiz Fernando se monitorará para que seu defeito não seja um incitador de conflitos, até que deixe escapar implícito um pouquinho de egoísmo. Somos parte da mania do outro. Precisamos aprender a dar bom dia para o defeito para terminar a noite no abraço de edredom.

O amor recomeça quando se decide trocar de defeitos. Descobrir os novos ao invés de apontar os velhos. Brincamos com os efeitos do defeito. A obsessão de querer descobrir os novos defeitos para reencontrar as velhas qualidades.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Aquele que vive implicando com um defeito já não vive sem a sua repetição.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Capa do Caderno Cultura, 03/09/2011, Edição Nº 1163


Um comentário:

Tatiana Monteiro disse...

Se todas as coisas da vida me pudessem ser explicadas atrávés de suas crônicas, Padeiro, eu certamente seria uma pessoa mais feliz. Tudo fica bem mais fácil de entender através dos seus olhos... A impressão que tenho é que suas palavras estão cada vez mais afiadas... a cada tema. Saudade de você, querido. Beijos, Tati