segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Criatividade Arrogante

Arte de Weberson Santiago


Nessa onda das reflexões de fim de ano cheguei à conclusão que minha criatividade é arrogante. Ela se antecipa em querer descobrir como se faz toda e qualquer coisa que observo. Inspeciona o que está na minha frente até descrever os materiais ou ingredientes. Antes parasse por aí. Que nada. A arrogância faz questão de mostrar que sabe fazer igual, e tem o péssimo hábito de tentar fazer melhor.

Sempre foi assim. Quase que um vício em aprender a fazer. Começou com a culinária. Se engana quem pensa que foi uma tentativa de impressionar. Necessidade mesmo. Cansado de me deparar com o hambúrguer deixado pela empregada no final do dia. Já na adolescência testava o molho bechamel no macarrão. Consultava uma coleção de livro de receitas que minha mãe fez e que vinha toda semana junto com o jornal.

Minha mãe nunca foi de cozinhar durante a semana, mas manteve os livros de todas as culinárias do mundo e a dispensa para que eu pudesse driblar a fome e me fazer cozinheiro. No livro, passo a passo com foto. A invenção de novas combinações foi uma questão de tempo e de preguiça, e não de segurança. Na hora de repetir a receita, a moleza de subir na grande estante de ferro para pegar o livro me levava à variação nas quantidades e ingredientes.

Quando fui morar em São Paulo durante a faculdade, meus principais problemas eram a falta de dinheiro, o preço do aluguel e da comida. Quando abriu a barraca de sanduíche na rua de casa, encontrei o meu Mc Donalds. Foi comendo o Misto Quente de café da manhã até o X-Tudo do jantar que descobri que tinha o mesmo atendimento do Burger King, podia pedir o lanche da minha maneira. Da saída do funcionário do caixa do carrinho me restou o convite para meu primeiro emprego.

O dono era um migrante analfabeto, que havia feito o recrutamento e a seleção ao me observar. Viu minhas habilidades para fazer contas enquanto comprava dele e teve como prova de minha honestidade o dia em que lhe falei o erro do Banner/Cardápio de seu estabelecimento móvel: Lanches do Pedrininho (se bateu o olho e leu Pedrinho, leia novamente). O caixa e as compras eram fechados por sua mulher, que tinha curso técnico em contabilidade.

Meu papel se resumia a entregar o refrigerante e a cobrar o cliente. Muitos eu já conhecia de dividir as cadeiras na calçada durante as refeições. O Pedro se deu bem ao achar um espaço perto de um shopping onde os próprios vendedores evitavam a praça de alimentação para economizar. Nos finais de semana era o dia todo de pé, mas a movimentação da rua compensava. Se eu fosse cronista naquela época, hoje seria pós-graduado em filosofia do cotidiano.

Para minha criatividade, dar o troco e pegar a lata certa de refrigerante era pouco. Não cansava de notar o trabalho do chapeiro. Em uma hora de pouco movimento, resolvi me arriscar, fiz um sanduba completo para mim mesmo. Numa dessas, chegou um cliente e fez o pedido. Eu mandei o lanche. E de vez em quando trocava de posto com o amigo da chapa. Quando percebi, me gabava de quebrar os ovos com apenas uma mão. O ápice da função do chapeiro é jogar o ovo e o hambúrguer pra cima e ele cair do lado oposto, mas quebrar o ovo com uma mão já impressiona e demonstra aptidão para o posto. Dizem que não existe erro em investir em comida, mas essa regra não se aplica quando não há alvará de funcionamento e a lanchonete funciona na calçada.

Algum tempo depois de tentar minha carreira na manipulação de alimentos, já estava fadado ao estágio em uma empresa pública. Tive uma amiga que passou um ano fora e que conheceu um grande amor. Foi na vinda dele para o Brasil que minha criatividade ficou irrequieta. O cara era estilista no México, cortava os próprios cabelos e usava um corte moderno, descolado. Esta aí o maior grau de arrogância que a criatividade pode atingir. Rejeitar uma segunda pessoa para acertar o corte é sinal de soberba e deixa qualquer sujeito metido a criativo no chinelo. Comprar peças de roupas que chamam atenção é fácil perto de produzir uma própria escultura capilar. Domínio das próprias mãos, dos próprios cabelos, de alguma técnica e quem sabe até da gravidade.

O problema é que a arrogância da minha criatividade não permite que eu pergunte como se faz. Tem que produzir o próprio caminho, e isso me custa certos tropeços. Sabia que ele usava a máquina e arrumei uma. Foi uma catástrofe. Os funcionários da repartição onde estagiava que exalavam naftalina me olhavam como se eu trabalhasse fantasiado de Adão. Por pena, o mexicano acabou cortando o meu cabelo. Como a criatividade é operante, havia optado por deixar de lado uma nova tentativa de autocorte de cabelo. Acontece que a minha variabilidade comportamental acaba pescando uma vontade já empreendida e nem sempre bem sucedida.

Sem previsão de ir a São Paulo cortar com a Cassia, somei o que aprendi sobre a máquina a vendo cortar meu cabelo nos últimos 10 anos, mais o que aprendi com o mexicano e voilá. Arrisquei o corte e achei que ficou bacana. Meus avós comemoraram a diminuição do comprimento. A namorada ficou em dúvida se eu mesmo havia feito ou se tinha ido a algum salão.

Preocupada com o futuro, ela alertou: “É melhor não pegar o hábito de sempre cortar porque pode dar errado da próxima vez”. Ela não sabia que a arrogância da minha criatividade não aceita terceirização depois que centralizou a execução.



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