domingo, 19 de setembro de 2010

O Diário do Joelho

Nada como usar o nosso assento de fábrica para sentar. Sem cadeira, sem banco e nem mureta. Sentar no chão é uma prova do despojamento do objeto, um sinal de displicência. Hábito que deixamos na infância, nas rodas que a professora organizava sinalizando a forma geométrica com fita crepe até que as crianças aprendessem seu formato.

Eu gosto de sentar em roda no chão e aprendi com a professora a geometria da interação. Não aceito círculo oval e muito menos outro formato que me lembre de algum polígono. Peço pra acertar. Com crianças ou adolescentes dispenso logo a mesa e as cadeiras e faço o convite para ocupar o lugar das solas.

Dia desses, ao terminar a atividade em roda no chão, apoiei a mão e girei o corpo para levantar. “Trec!”, fez meu joelho no exato momento em que levantava. Não conseguia colocar a perna direita sem muita dor no chão e fui em direção à mesa. A dor parecia se estender da batata da perna até a parte de trás da coxa. Seria uma distensão muscular? Ou pior, uma lesão no joelho?

Sentado, aguardava um pouco e nada de melhora. Não conseguia esticar completamente a perna e pensava: e a viagem da próxima semana? Eu vou dirigindo. E se tiver que operar o joelho, a defesa do mestrado está chegando! Me bateu um desespero. Medo dos empecilhos. O que eu fiz? Liguei para minha mãe!

Antes que o leitor dê risada da atitude do marmanjo beirando trinta anos, explico que ela é enfermeira. Praticamente um pronto socorro dentro de casa e recomendou que marcasse uma consulta de urgência no ortopedista. Liguei em seguida e agendei para o final da tarde, enquanto cruzava a perna, mudando de posição. Levantei e para minha surpresa a perna sem qualquer problema. Pisava normalmente, sem nenhuma sensação de dor.

Teria minha ansiedade antecipatória perante o mês abarrotado de compromissos importantes me pregado uma peça? Será que me tornaria uma vítima da somatização? O cara com uma década de terapia se comportando com a função de chamar a atenção? Me vi sem graça para desmarcar a consulta, mas me peguei sem motivo para mantê-la. No final da tarde do mesmo dia, a mania de sentar sobre a perna direita me repetiu a mesma situação. Testava movimentos para encontrar a solução até que um estalo terminou com a dor. Pronto, psicossomático não era. Com uma tremenda vergonha da secretária, remarquei a consulta para a manhã seguinte, torcendo para a perna funcionar até a última aula da noite.

Fiquei mais tranquilo na sala de espera que exibia os diplomas do médico formado e residente pela USP de Ribeirão Preto. Me recebeu com simpatia perguntando o motivo da consulta. Relatei as marcações e desmarcações e ele sorriu, atento ao desaparecimento do sintoma. Pediu que eu fosse para a maca para examinar. Apalpou o joelho até o lado de fora para localizar algum ponto dolorido e eu dando as coordenadas das sensações. Achamos o lugar lateral do joelho que estava dolorido. Ele levantou minha perna e flexionou em diversas direções até que um estalo instalou a dor, que sinalizei imediatamente.

Ele demonstrou espanto. Com mais rapidez fazia os movimentos contrários na tentativa de voltar ao lugar. E propôs que eu esticasse a perna já me levando ao movimento e eu estrilei de dor. Pedi que ele me deixasse cruzar a perna sozinho e descruzar e mais um pouco de movimento o estalo do alívio. Levantei da maca após o sufoco com a testa igual a um copo de refrigerante gelado. Ele foi em direção a sua mesa dando risada e soltou:

- É muito interessante! – e eu de supetão respondi:

- Como isso é novo pra mim, eu estou achando tudo muito interessante. Mas se para você que é especialista, essa história está curiosa, deve ser interessante mesmo. Mas o que afinal é isso?

- Provavelmente uma lesão do menisco externo direito. Primeiro você termina seu mestrado, resolve seus compromissos urgentes e depois faz um exame de ressonância pra gente ter certeza. Ele pode passar a travar ocasionalmente ou até diariamente. Se começar a restringir muito seus movimentos é o caso de operar e retirar a parte doente, mas vamos tentar evitar a cirurgia.

- Certo, e o que eu não posso fazer? – perguntei temendo grandes impedimentos.

- Principalmente agachar.

- E caminhar, eu posso?

- Deve evitar. O melhor seria fazer bicicleta.

- Eu gosto de nadar! – disse metralhando todas as possibilidades.

- Pode nadar, mas cuidado com a pernada de peito que pode travar seu joelho.

- E musculação, pode?

- Qual a carga que você faz?

- Eu não faço!

- Não faz há muito tempo e vai resolver começar a fazer agora que suspeitamos de uma lesão recente no seu joelho. Nada disso!

Ele tinha razão, mas eu queria saber todos os limites impostos pela falha da articulação. O que significa sair de uma consulta sabendo que seu joelho tem um botão on e um off para a dor? Pensava nas rodas que iria fazer e ter de sentar na cadeira em um nível superior ao restante. Não gosto da diferença imposta pelo pedestal. O problema, ou a idade, me obrigavam a assumir certa arrogância para aceitar o estorvo. Acho que andei carregando muito peso e meu corpo não aguentou sustentar sem sofrer um dano.

Para compensar tal constatação, resolvi cuidar muito bem dele. Sim, meu joelho tem quase vida própria. Tenho sempre à mão uma caderneta de anotações para não desperdiçar ideias. Agora, acabo de comprar um diário para o meu joelho. Registro cada vez que ele apresentou um problema e o que eu estava fazendo naquela hora. De manhã, pergunto como ele acordou e anoto. À noite, faço o mesmo antes de dormir.

Anda chamando a minha atenção nas horas mais impróprias: durante um atendimento de uma mãe, quando pedi licença para o contorcionismo do destravamento; ou no sofá com a namorada ainda muito distante de qualquer preliminar. Vamos ver se ele melhora com os trinta minutos de gelo diários, divididos em duas sessões. Adaptações são necessárias. Não posso perder a articulação.


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