domingo, 12 de setembro de 2010

De cara com o boi

Costumo falar em aulas ou palestras de nossas reações de alarme diante de ameaças e explicar os efeitos psicofisiológicos do sinal de perigo com o exemplo de um homem das cavernas diante de uma onça pintada. Vou descrevendo cada reação de luta ou fuga possível e supondo reações físicas. Olhos arregalados permitindo uma ampliação do campo visual, aceleração cardíaca bombeando sangue para as extremidades do corpo, descargas de hormônios e assim vai.

Considerava, deixando claro para os ouvintes, que a probabilidade de dar de cara com um animal de grande porte pela manhã ao sair para o compromisso era baixa e que as reações de alarme atualmente são diante de provas, avaliações, competições, apresentação de trabalhos, etc. Depois dessa manhã, preciso rever minhas ideias sobre os perigos possíveis numa rua pacata do interior de São Paulo.

Mais um sábado de sol. Acordo e caio na piscina do clube, ainda vazio naquela hora. Escolhi uma das sete raias, fiz meus metros e na saída resolvi tomar café com meus avós, que aos sábados levantam um pouco mais tarde. Parti ao encontro deles. Junto a casa funciona uma loja de decoração, onde trabalham minha avó, minha tia e a Lenita, a vendedora. Uma loja com mais de trinta anos, com os objetos milimetricamente dispostos para compor um visual estético agradável que definimos como bom gosto.

Tendo acabado de abrir a porta e a vitrine, Lenita resolveu dar baixa nas vendas do dia anterior e sentou a mesa no fundo da loja. Meus avós estavam há alguns cômodos de distância tomando o café da manhã na copa quando, de repente, ouvem um estardalhaço como se o telhado da loja tivesse caído. A Lenita concentrada no caderno reagiu assustada ao barulho levantando rapidamente da cadeira e deu de cara com um boi preto entrando e atropelando cristais, vasos, lanternas, gaiolas, porta-retratos, abajures, e tudo o mais que estava pela frente. Pegou o embalo da descida da rua e entrou com tudo, não se contentando com o estrago foi entrando como convidado, demonstrando intimidade.

A Lenita acuada no fundo, tentando fugir do macho bovino que havia parado no arranjo imitando folhagem para mascar um capim de plástico. Nesse momento chega o meu avô para ver o que havia acontecido, enquanto minha avó, na copa, imaginava logo uma tragédia que não teria coragem de confirmar com os próprios olhos.

“Tem um boi aqui!” – gritou ele lá de cima – e ela já entendeu que meu avô usava algum tipo de gíria para dizer que um assaltante tinha pegado a Lenita como refém.

Enquanto isso, a Lenita usava a cadeira como escudo e meu avô com um rodo encontrado no caminho como instrumento para colocar o boi pra fora. Como minha avó acreditaria que literalmente era um boi desgovernado?

E foi depois de várias tentativas de colocá-lo pra fora que os dois o levaram para a porta de loja, e eu que chegava topei com o boi preto depois que tranquei o carro e me virei rumo à loja. Ele tomou um susto e empacou, logo vi os dois atrás dele e saí da frente. Enquanto eles gritavam, o boi pacientemente se abaixou e abocanhou uma maça de isopor que enfeitava alguma coisa e que agora estava em meio aos estilhaços no chão. Cuspiu decepcionado e saiu descendo a rua e os dois respiraram aliviados. Foi preciso chamar a polícia, listar os prejuízos.

A Lenita, muito eficiente, localizou o dono do boi. Havia dado conta do sumiço do animal pela manhã e estava a sua procura. Prometeu pagar o prejuízo resultante da falta de delicadeza e rebeldia do boi. As infelizes queimadas botaram a cerca abaixo e ele apenas fugiu do fogo. Já que não podia ficar em paz no pasto, procurava uma sombra. E eu que pensava ter feito estragos na loja quando fuçava em algo que quebrava durante a minha infância.


5 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Hehehe A vendedora Lenita foi ótimo!! Mto Bom!!!

Paulo César Vieira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paulo César Vieira disse...

Muito bom. Consigo imaginar a cena na pacata e imprevisível cidade. Surpreendendo como sempre! kkkk

Tatiana Monteiro disse...

É meu querido, a vida como ela é... já tive uma vaca se afogando na piscina da minha vó também... experiência inesquecível. Saudade de você, padeiro! Bom demais te ler! Beijos, Tati