Arte de Weberson Santiago |
Vitor não aguentou e resolveu contar para os amigos naquele mesmo dia
que havia entrado na casa do velho e ficado amigo dele. Jorjão e Remela
admiraram a coragem do amigo e pediram para ir junto quando ele fosse buscar o
pássaro. Na véspera de ir buscar o pássaro, Vitor não conseguia dormir. A mãe
só lhe autorizou passar de lá na volta da escola. O sinal tocou e Vitor
disparou no caminho de volta e chegou ofegante na casa do velho Arthur,
deixando os amigos para trás.
Dona Olímpia levou o menino até o fundo onde estava o marido e ele viu o
filhote pelado no ninho, junto da mãe. A cria tinha vingado, mas ele precisaria
esperar alguns dias até poder leva-lo pra casa. Ele já ficou satisfeito em ver
o bichinho vivo. Dona Olímpia estava acabando de fazer o almoço e convidou o
menino pra ficar e comer com eles. Ele disse que precisava avisar a mãe. Deu um
pulo em casa, jogou a mochila e avisou a mãe que voltaria lá. A mãe consentiu,
mas viu que teria de se aproximar da vizinha para ver quais eram as intenções
do casal.
Enquanto almoçavam, Seu Arthur explicou como alimentar e cuidar do
Diamante de Gould. Dona Olímpia questionou qual seria o nome do pássaro. Vitor
respondeu prontamente: “Vai se chamar Falcão, dona”. Os velhos riram. Quando
acabaram, Arthur convidou Vitor pra chegar na oficina. Arrumou uma cadeira pequena
que parecia ter sido feita sob encomenda para acomodar o menino e o colocou num
canto seguro longe das ferramentas, para que o velho pudesse trabalhar e, ao
mesmo tempo, olhar no rosto do menino para fazer a leitura labial.
Nasceu aí uma grande amizade entre o menino e o velho. Por duas ou três
vezes na semana, Vitor frequentava a casa do casal. Às vezes ia direto da
escola e almoçava lá. Outro dia aparecia mais tarde e comia um pedaço do bolo
de fubá da Dona Olímpia a tomava café com seu Arthur no intervalo entre as
horas de trabalho. Vitor passava as tardes observando o velho trabalhar e
construir objetos de madeira dos mais variados. Todo aniversário do garoto, o
velho Arthur lhe fazia um presente de madeira. Cerca de três anos se passaram,
enquanto Vitor assistiu os movimentos do carpinteiro ficarem mais lentos. Percebeu
o aumento da sua dificuldade ao usar a força e viu a catarata dificultar a
visão e a leitura labial. Já tinha ouvido todas as suas histórias do garimpo,
as aventuras da juventude, sabia de cor a história de como ele conheceu a
esposa. Vitor sabia o motivo de cada ruga de Arthur e que a carpintaria era o
seu esqueleto, o que o mantinha de pé.
Foi a decadência do corpo do velho mais o interesse aguçado do garoto
que fizeram com que Vitor começasse como ajudante e fosse aprendendo passo-a-passo
a ser um carpinteiro. Vitor ajudava a atender os clientes, fazia cobranças dos
móveis comprados em parcelas. Aos quatorze anos era os olhos, os ouvidos e o
braço direito do velho Arthur. O adolescente era o filho e o neto que Arthur e
Olímpia não tiveram. O casal eram os avós que Vitor não teve presentes porque
moravam longe.
Aos oitenta e quatro anos, pela manhã, Seu Arthur estava trabalhando
numa estante quando começou a passar mal e caiu no chão desacordado. Dona
Olímpia se assustou quando chegou com o café e encontrou o marido no chão. Ele
já estava morto, vítima de uma parada cardíaca.
Quando Vitor saiu da escola, seus pais estavam parados na frente da casa
dos velhos. O menino estranhou encontrá-los ali. A mãe o pegou pela mão, o pai
lhe colocou a mão no ombro e lhe deram a notícia da perda do amigo. Vitor saiu
correndo, subiu o morro onde ele soltava pipa quando era mais novo e ficou
sozinho por algum tempo. Não se conformava com o que havia acontecido. Voltou
pra casa nervoso, revoltado. Entrou batendo a porta e seguiu em direção a
gaiola onde estava o Falcão. Pegou a gaiola e foi até a frente da casa. Abriu a
portinhola.
O pássaro ficou parado. O menino ficou olhando. De repente ele saiu do
poleiro e pousou na porta da gaiola. Vitor não fez nada para impedir e ele
bateu asas. O menino viu pelas grades para onde.
Ele havia ido em direção à oficina, no fundo da casa dos velhos. Demorou
alguns dias mas Vitor entendeu o recado. Se ele quisesse que o espírito do
velho Arthur continuasse vivo, teria de continuar a carpintaria.
| Nós escolhemos as heranças que
carregamos para o resto de nossas vidas.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 11/07/2015, Edição Nº 1363.
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