sexta-feira, 20 de junho de 2014

Uma Mesa de Duas Pernas




Uma mesa de quatro pernas, quando perde uma, pode até conseguir permanecer de pé. Quando perde a segunda perna, a primeira tem de estar escorada.

Para quem, como eu, teve a sorte de ter tido os quatro avós e crescer com eles ao meu redor, perde-los é um bocado difícil. A presença deles é como uma estrutura. Nesta noite perdi a segunda perna da minha mesa: minha avó Malvina.

A notícia no silêncio da noite me vez assistir a um trailer da minha própria infância. A primeira história foi exaustivamente contada por ela durante meus 31 anos: quando eu disse as primeiras palavras aos 10 meses e 30 de vida. Ela falou silabicamente e eu repeti, uma de cada vez. Carro, papai e mamãe. Estava no colo dela. Pediatras desconfiavam, mas ela dispunha de testemunhas. Nunca me cansei de ouvir esta história e se tivesse a vaga ideia de uma partida repentina teria pedido que me contasse mais uma dezena de vezes.

Comemorava quando a escola mandava um livro para leitura. Usava como pretexto para pedir pra ir dormir na casa dela, que era professora de português. O ritual consistia em cobertor e leite na caneca na sala que não tinha TV. Deitado no colo dela, ouvia a história e via as figuras. A partir disso, os livros se tornaram sinônimo de carinho.

Ela gostava de dizer que eu já levava jeito pra psicólogo desde criança. Ela tinha uma mania de passar o rodo na porta de casa após qualquer chuva. Justificava dizendo que era porque tinha medo que alguém caísse. Minha primeira intervenção psicológica, aos 8 anos, foi: “Vó, você não acha que você tem muitos medos? Alguém já caiu aqui?”. Embora a pergunta a tenha deixado desconsertada e a tenha feito pensar, ela gostava de contar o episódio como sendo uma prova de minha vocação. A partir daquele dia, o terraço na porta da casa permanecia molhado até que a água evaporasse.

Houve também uma história engraçada. Éramos crianças quando meus pais nos deixaram, meus irmãos e eu, na casa dela pra sair com os amigos à noite. Tocamos a campainha. Quando ela abriu a porta, sua saia caiu. Estava com uma ceroula por baixo, mas caímos todos nas risadas. Nós sentamos no chão de rir e ela na cadeira de palha perto da porta.

Para quem gosta de ler minhas crônicas, ela teve uma participação importante na construção de minha identidade de escritor quando estava na sexta série, aos 12 anos. A professora me pediu uma redação e eu não tinha ideia do que escrever. A tarde, liguei pra ela e pedi ajuda. Ela me ensinou mais um ritual: procurar um lugar sossegado e gostoso de ficar, de preferência com natureza. Então deixar a imaginação solta até que viesse uma ideia. A redação foi para no mural da sala. Tenho ela guardada até hoje.

Ela esteve comigo quando passei na faculdade, quando me formei na faculdade. Quando entrei no mestrado e quando defendi o mestrado. Assistia minhas palestras em escolas. Recebeu a Natália e a Anelise na família como se já fizessem parte há muito tempo. Comemorou quando resolvemos morar juntos. Veio ver nossa casa quando compramos. Ela me apoiou em cada passo importante. Era, sem dúvida, uma das pessoas que mais acreditavam no meu potencial.

É tudo isso que eu tive e que não terei mais. Estou perdendo algo muito valioso. Junto com a perda deve vir a aceitação de que o que foi vivido não será mais. Sentirei muita falta dela nos próximos passos de minha vida.

O que me consola é que há pouco tempo fizemos uma festa de comemoração dos 60 anos de casamento que teve um momento muito especial. Todos reunidos em volta do casal disseram coisas importantes sobre o que eles foram e são na nossa vida. Quase todos ali presentes falaram o que sentiam. A Natália falou, eu falei. Ela partiu sabendo o quanto foi importante e querida por nós.

Agora que perdi a minha avó Ina, vou procurar ajuda onde ela me ensinou a procurar: nos livros. Não que vá fugir da dor na literatura. Pegarei uma pilha para me escorar a mesa e ver se mantenho o equilíbrio. Amigos, aqueles que quiserem dar uma força e segurar o tampo da minha mesa, enquanto tento encontrar os livros que irão me ajudar a escorá-la. Não tenho vergonha de dizer que hoje preciso de vocês.

2 comentários:

Matiza Rigobello disse...

Que riqueza Augusto, essas memórias são pérolas, tenha certeza que você é um privilegiado por ter convivido com ela por tanto tempo! Não te vi no velório, então aqui
vai meu abraço!

Augusto Amato Neto disse...

Obrigado Matiza, pelo carinho!