sábado, 13 de agosto de 2011

Lombadas

Arte de Weberson Santiago



Diferentemente da maioria das pessoas, eu comemoro quando encontro uma lombada nova na rua.

Explico a razão. Eu aproveito a diminuição da velocidade para olhar ao meu redor enquanto passo pelas ruas. Sempre há algo que me chama a atenção e que seria tratado com indiferença não fosse o obstáculo.

Há uma mulata de cabelos armados na altura dos ombros que sempre está na rua no final da tarde. Meu olhar gosta de reencontrá-la e a lombada me dá o tempo de medi-la dos pés a cabeça. Está sempre com um detalhe que chama a atenção. Uma presilha combinando com o sapato. Uma blusa colorida de decote. Um cachecol tricotado no pescoço. Nunca fica parada olhando o movimento, está sempre falando com alguém ou indo para algum lugar. Dia ou outro ela não está lá e eu imagino que deve estar dentro de casa se aprontando para sair, indecisa na escolha do detalhe para a aparência.

Aos domingos, em frente à igreja da periferia, olho uma banca de frutas onde trabalha uma senhora. O sol ainda nem aqueceu os cantos gelados da noite e ela está a postos. Parece que faz pose para um quadro ao mirar o horizonte quando não atende ninguém. Ultrapassando a lombada, vejo seus cabelos grisalhos e suas costas arqueadas por detrás da extensa bancada de frutas e verduras. Reverencio uma mulher forte, que esbanja disposição para o trabalho no domingo.

Quando reduzo a velocidade na lombada da estrada, miro a família trabalhando na roça. Aprecio quem respeita o ritmo da natureza. As plantações não programam suas necessidades para os dias úteis. Para quem mora no campo, não há fim de semana ou feriado. Todo dia é dia de trabalho, com um pouco mais ou um pouco menos de tempo na sesta. A não ser no dia santo ou no dia de festa.

A lombada é o meu pretexto para a contemplação.

Já quis avisar a mulata o quanto me alegro em lhe encontrar e o quanto já me acostumei em vê-la passar, mas fico com receio de parecer invasivo. Ela pode pensar que sou um maníaco a espionar as suas saídas e contar para o marido, se é que ela tem um. Então, prefiro me contentar em olhar.

Pensei em parar diante da igreja e entrevistar aquela senhora da feira, o que poderia me render uma bela crônica. Porém, fiquei com receio de descobrir que ela não gosta de ficar atrás da bancada no domingo ou dela se queixar de dor nas costas de montar e desmontar cada caixote de frutas e verduras. Prefiro a moldura da minha imaginação.

Já tive vontade de entrar no sítio e conhecer de perto a vida no campo. Da última vez, me recusei a passar batido. Puxei papo do volante, eu no carro e Seu Zé no trator. Da porteira pra entrar na terra foi um pulo. Pulei o mata-burro. Questionei os cuidados com os pés de alface, pedi para apanhar uma fruta no pé. Experimentei a cachaça enquanto papeava na varanda do Zé Manso. Saí mansinho da visita, levando um novo amigo.

Com a pressa que insistimos em carregar na rotina, não há como desacelerar o suficiente para ultrapassar as lombadas do caminho. É a corrida dos aflitos em meio aos obstáculos da vida. E não há como transpor uma barreira sem saltar por cima dela. E quando estamos no ar, ainda que por poucos segundos, não queremos sentir o medo e a insegurança de não sentir o chão, mesmo que seja para deixar o obstáculo para trás.

Eu desacelero e faço questão de olhar para o lado. É assim que enfrento os empecilhos que surgem diante de mim, me distraindo com as coisas belas e tortas que estão ao meu redor até chagar a hora de ir além.

UM CAFÉ E A CONTA!

| O pior motorista é o que ignora o obstáculo e não é capaz de aprender com o que se fez imagem em seu retrovisor.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Caderno Cultura, p. 3, 13/08/2011, Edição Nº 1160.


3 comentários:

Rosa Maria disse...

Oi...Boa semana!
Ta ai, nunca tinha pensado por este lado.
Vou prestar mais atenção...
Faço isso indo ao trabalho à pé... observo tudo à minha volta percebo o quanto sou privilegiada.
Abraços

silvia carvalho disse...

LINDO!

Anônimo disse...

Estou aqui, sem palavras, completamente emocionada com a beleza da crônica e preocupada com as belezas que certamente perdi.
Augusto, obrigada.