quinta-feira, 1 de abril de 2010

A fé duvidosa no amor

Oi Augusto!

Eu e o Cláudio nos desentendemos muito facilmente, a gente pensa diferente - óbvio que ninguém pensa igual, mas eu não sei se eu estou exagerando, mas a gente pensa muito diferente e não só a crença religiosa é BEM DIFERENTE, mas nossos objetivos de vida. A gente se gosta muito e pensa em casar e construir uma família, mas eu acho que ele espera que eu me converta pra que isso aconteça e eu não vou me converter - eu o acompanhei na Igreja algumas poucas vezes e já participei de alguns eventos da Igreja só pra estar junto, mas pra isso eu procurei ver só o lado bom dessa Igreja.

As divergências não se restringem à religião, mas isso pesa bastante, principalmente porque ele está se dedicando cada vez mais e eu fico irritada com isso porque eu não consigo ver a gente se casando com ele participando e super envolvido com a Igreja.

Na verdade, em tudo que ele diverge de mim eu quero que ele faça como eu, pense com eu, queira como eu... Eu estou doente! Eu me irrito com as divergências e acabo falando o que não devo, acabo ferindo. Então, por um breve momento - mas muito breve mesmo - eu não faço julgamento nem emito minha opinião, mas essa não sou eu! Eu peço desculpas - sou sempre eu que jogo merda no ventilador - e as coisas se acalmam. Eu tenho muitas expectativas e sou muito impaciente e ele me dá a oportunidade de repetir meus erros. Eu não sei quem é mais acomodado - acho que ele - o meu problema é a insegurança.

Eu sei que um casal não precisa nem consegue ter a mesma visão e o mesmo sonho, eu sei que uma vida a dois não se faz anulando-se, mas algumas concessões precisam ser feitas, alguns sonhos precisam ser sonhados juntos, um precisa acompanhar o outro, estar junto, apoiar.

Eu ainda o amo e, por isso, vou tentar fazer dar certo - não sei como, mas eu vou tentar. Eu quero muito que dê certo. Ele é meu melhor amigo. Eu não quero perder ele.

Beijos,

Célia.

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Célia,

A religião acaba por ocupar um espaço muitas vezes distinto da exigência da fé. Quando percebemos, não estamos seguindo a Deus, mas um sacerdote humano. Sem esperar surge uma dúvida sobre como o grupo interpreta as Sagradas Escrituras e faz disso o "pensamento de Deus". Quando uma religião torna-se o empecilho de um relacionamento afetivo, ela está cumprindo o oposto de sua obrigação: o de agregar as pessoas, de disseminar valores morais como a noção de irmãos enquanto filhos de Deus e o respeito às diferenças.

A Igreja está sendo a questão que vai mostrar que existem algumas divergências importantes entre vocês. O duro é que em certas Igrejas não se permite nada além do Canto Gregoriano que recita a Bíblia em uma melodia que não aceita cantores que se destaquem. Nesta "casa", as diferenças devem ser superadas sem sequer assumi-las, já que o Cristão verdadeiro não criaria conflitos, mesmo que não defender seu ponto de vista seja uma anulação.

Sentir o desejo de constituir família quando se ama não é sinal que o relacionamento comportaria este novo passo. Você define o casal como acomodados, e talvez o que queira seja uma relação que te apresente novos mundos, o que só acontece quando sai do lugar de sempre. Sobre as diferenças, o seu namorado foi a única coisa que te fez bem no emprego "seguro", mas sufocante na pressão. Você foi corajosa para trocar o certo pelo duvidoso nos empregos e talvez quisesse que ele te acompanhasse trocando o certo da Igreja pela fé duvidosa no amor.

O fato é que ele é o primeiro, fica difícil ter referências quando só se conhece um tipo de todos os possíveis. Claro que é possível ser feliz tendo sido uma única relação, mas é preciso estar consciente das implicações desta escolha. Seu email está cheio de “mas”, como se essa relação estivesse repleta de ressalvas. Ele te ama, mas... Ele quer se casar e ter filhos, mas... Não acho que seja você quem joga a merda no ventilador, ela já está excretada, você apenas mostra que ela está ali, o que vem a contrariar a “paz” que plainou até então.

Ele parece ser mesmo mais acomodado, mas tem o álibi de agir em prol da Igreja. Por vezes o início de uma prática religiosa começa na fé e termina na esquiva da vida. Passo meu dia cuidando da Igreja, da comunidade e do líder para que não encare o mundo fora deste território: a vida em seu sentido mais amplo.

Ainda continuo achando que a reposta estaria em um distanciamento para abrir espaço para revisar os sentimentos, mas tenho minhas dúvidas sobre essa possibilidade no seu caso, por duas razões: primeiro pela Igreja não apoiar esta iniciativa dos fracos que "não perdoam" ou "não aceitam submissão", segundo que a insegurança que diz carregar talvez não permita esse grito de liberdade mesmo que seja para a sobrevivência deste amor.

Discordo um pouco de uma de suas últimas frases. "Eu sei, um casal não precisa nem consegue ter a mesma visão e o mesmo sonho". Um casal não precisa sempre ter a mesma visão, mas precisa sim compartilhar o mesmo sonho. O sonho também inclui todos os passos do caminho para concretizá-lo. Se ele não se dispuser a estes passos (esteja certa de que deixou claro quais são), não compartilha o seu sonho. Neste caso restaria a vocês serem apenas amigos ou a ele ser apenas aquela parte que você diz que ele já é: seu melhor amigo. Qual parte dele não quer perder?

Uma hora essa negociação precisa vir à tona.

Beijos,

Augusto.





Nota do Autor: Este Blog não publica casos clínicos, e sim estórias baseadas na convivência social do autor. Os questionamentos e as respostas foram feitas por alguém que procurou o amigo psicólogo e não o psicólogo amigo. Foi publicado com autorização da personagem principal, cuja identidade foi preservada pelo nome fictício.

Um comentário:

Rosa Maria disse...

Oi....
Muitas diversidades em um sentimento tão lindo O AMOR.
O que é Amar sem doar.
Enquanto um ganha o outro cede.
Amar é lindo...o que não entendemos é como Amar sem sofrer...rs
Abraços.
Adorei rever-te Augusto.