Arte de Weberson Santiago |
Ele anda com passos e movimentos mais lentos. Parece que lhe colocaram
uma sola de ferro nos sapatos. A musculatura precisa fazer mais esforço para
dar conta do peso das pernas. Se esforça para concatenar os passos, a posição
do tronco, o movimento dos membros. Faz malabarismos com o corpo, mas se recusa
a demonstrar esmorecimento nas atividades.
Os sentidos já não são mais os mesmos, falham. O labirinto não lhe
garante equilíbrio. O som ouvido nunca é o suficiente para a compreensão. As
mãos tremem na hora de levar a xícara aos lábios. Falta-lhe força nos punhos e
coordenação nas mãos para conseguir picar a carne. Falta-lhe precisão para
fincar a azeitona com o garfo. Culpa a faca e suas cerdas desgastadas.
Reclama que a comida está sem gosto. É tanto alho que ele está protegido
de vampiros num raio de cinquenta quilômetros, mas ele insiste em dizer que faltam
sal e tempero na comida. Os olhos não colaboram. A catarata lhe deixou com as
vistas embaçadas. Onde tem frango, vê peixe. Onde tem legumes, vê massa. Diante
da dificuldade de identificar a comida, pergunta para quem está do lado para descobrir
o que vai comer.
Ele funciona como meu notebook. Se ninguém interage, entra em estado
suspenso. Ele cochila sentado quando não tem com quem conversar. Cochila na
mesa depois das refeições, cochila na sala de televisão com a tevê ligada. Ele
sai do estado de hibernação como o meu notebook. Basta um toque. É um grito da
novela ou uma propaganda com volume mais alto e ele acorda como se o tempo
tivesse parado quando ele começou a cochilar e nada tivesse acontecido no mundo
durante este intervalo. Basta que alguém pise mais firme ou abra uma gaveta e
ele desperta. É um sono leve para economizar energia, como o do meu notebook. É
quase uma meditação oriental. Ele despertou e já tem a consciência de um mestre
capaz de distribuir conselhos.
Ela morre de medo dele morrer primeiro e dela ficar só. Ela morre de
medo de um monte de coisas. Por isso, todos os dias ela pega sua caixa com
dezenas de orações e novenas. Reza por uma ou duas horas, sentada na varanda.
Reza pelo marido, por cada um dos filhos e pelos netos. Reza por quem ela vê
sofrendo. Tem horas que ela pede, mas tem hora que ela é impositiva com os
santos. Às vezes ela faz algum tipo de chantagem ou barganha com eles. Dá uma
ameaçada de leve. Faz com os santos do mesmo modo que faz com o marido: ela
tenta mandar neles para que eles façam o que ela quer.
Ela sofre com quem adoece e padece quando alguém morre. Sente como se a
fila andasse uma posição e a vez dela ou dele se tornasse mais próxima. Ela
morre de medo de ficar doente e sofrer prostrada numa cama. Morre de medo de
doença. É tanto medo que quase já virou uma doença. Poucas pessoas como ela amaram
tanto a vida, viveram cada dia com tanta alegria. Para ela, é difícil continuar
tão feliz sabendo que a vida se aproxima do fim. Ela sempre sofreu por
antecedência e quis controlar tudo. Agora está antecipando o fim, querendo
controlá-lo.
Eles comem pouco. Reclamam que não tem apetite. Se depender do aviso de
fome do corpo, ficam sem comer. Comem porque chega a hora, comem pelo hábito ou
porque alguém fala que tem que comer. Eles bebem pouca água. Se depender do
aviso de sede do corpo, se desidratam. Precisam que alguém os lembre de suas
próprias necessidades básicas. Não gostam de depender, mas sentem-se felizes em
ter alguém que lhes cuide.
A comunicação mudou com o tempo. Quando se conheceram e eram jovens,
falavam pelos olhos, mas a rigorosidade dos pais e irmãos não lhes permitia que
conversassem. Quando começaram a namorar, falavam pelo tato, conversavam pelas
mãos. Na maturidade do casamento, deixavam recados junto aos objetos pela casa.
Agora, na velhice, ao invés de encontrarem os lábios, a boca vai de
encontro ao ouvido do outro. Aproximam-se, pendem o tronco abaixando um dos
ombros para o lado onde está o outro, para que um não precise falar muito alto
e para que o outro escute o que for falado. Reclamam um do outro. Às vezes saem
resmungando da conversa. Mas boa parte do que eles precisam é saber que o outro
está ali, por perto. Agora, na velhice, eles aprenderam a conversar com o silêncio
da presença.
| Viver a decadência do corpo faz
parte da vida. O desafio é envelhecer sem perder a dignidade.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 05/09/2015, Edição Nº 1371.
2 comentários:
"O difícil é envelhecer sem perder a dignidade" - lindo texto, Augusto, fiel, autêntico. Que pena que o tempo passe e deixe suas marcas nos seres humanos roubando-lhes as forças. Seria necessário que os mais jovens enxergassem nos mais velhos o que o tempo vai fazer com eles no futuro e procurassem mitigar as dificuldades que os velhos encontram. Mas eles vivem o presente como se não houvesse o amanhã e só quando começam a lhes faltar as forças, eles se recordam de que aquilo é um "deja vu", e não há mais tempo.
Concordo em gênero, número e grau, amiga Elenir! Obrigado pela visita na minha padaria.
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