sábado, 5 de setembro de 2015

Envelhecimento

Arte de Weberson Santiago


Ele anda com passos e movimentos mais lentos. Parece que lhe colocaram uma sola de ferro nos sapatos. A musculatura precisa fazer mais esforço para dar conta do peso das pernas. Se esforça para concatenar os passos, a posição do tronco, o movimento dos membros. Faz malabarismos com o corpo, mas se recusa a demonstrar esmorecimento nas atividades.
Os sentidos já não são mais os mesmos, falham. O labirinto não lhe garante equilíbrio. O som ouvido nunca é o suficiente para a compreensão. As mãos tremem na hora de levar a xícara aos lábios. Falta-lhe força nos punhos e coordenação nas mãos para conseguir picar a carne. Falta-lhe precisão para fincar a azeitona com o garfo. Culpa a faca e suas cerdas desgastadas.
Reclama que a comida está sem gosto. É tanto alho que ele está protegido de vampiros num raio de cinquenta quilômetros, mas ele insiste em dizer que faltam sal e tempero na comida. Os olhos não colaboram. A catarata lhe deixou com as vistas embaçadas. Onde tem frango, vê peixe. Onde tem legumes, vê massa. Diante da dificuldade de identificar a comida, pergunta para quem está do lado para descobrir o que vai comer.
Ele funciona como meu notebook. Se ninguém interage, entra em estado suspenso. Ele cochila sentado quando não tem com quem conversar. Cochila na mesa depois das refeições, cochila na sala de televisão com a tevê ligada. Ele sai do estado de hibernação como o meu notebook. Basta um toque. É um grito da novela ou uma propaganda com volume mais alto e ele acorda como se o tempo tivesse parado quando ele começou a cochilar e nada tivesse acontecido no mundo durante este intervalo. Basta que alguém pise mais firme ou abra uma gaveta e ele desperta. É um sono leve para economizar energia, como o do meu notebook. É quase uma meditação oriental. Ele despertou e já tem a consciência de um mestre capaz de distribuir conselhos.
Ela morre de medo dele morrer primeiro e dela ficar só. Ela morre de medo de um monte de coisas. Por isso, todos os dias ela pega sua caixa com dezenas de orações e novenas. Reza por uma ou duas horas, sentada na varanda. Reza pelo marido, por cada um dos filhos e pelos netos. Reza por quem ela vê sofrendo. Tem horas que ela pede, mas tem hora que ela é impositiva com os santos. Às vezes ela faz algum tipo de chantagem ou barganha com eles. Dá uma ameaçada de leve. Faz com os santos do mesmo modo que faz com o marido: ela tenta mandar neles para que eles façam o que ela quer.
Ela sofre com quem adoece e padece quando alguém morre. Sente como se a fila andasse uma posição e a vez dela ou dele se tornasse mais próxima. Ela morre de medo de ficar doente e sofrer prostrada numa cama. Morre de medo de doença. É tanto medo que quase já virou uma doença. Poucas pessoas como ela amaram tanto a vida, viveram cada dia com tanta alegria. Para ela, é difícil continuar tão feliz sabendo que a vida se aproxima do fim. Ela sempre sofreu por antecedência e quis controlar tudo. Agora está antecipando o fim, querendo controlá-lo.
Eles comem pouco. Reclamam que não tem apetite. Se depender do aviso de fome do corpo, ficam sem comer. Comem porque chega a hora, comem pelo hábito ou porque alguém fala que tem que comer. Eles bebem pouca água. Se depender do aviso de sede do corpo, se desidratam. Precisam que alguém os lembre de suas próprias necessidades básicas. Não gostam de depender, mas sentem-se felizes em ter alguém que lhes cuide.
A comunicação mudou com o tempo. Quando se conheceram e eram jovens, falavam pelos olhos, mas a rigorosidade dos pais e irmãos não lhes permitia que conversassem. Quando começaram a namorar, falavam pelo tato, conversavam pelas mãos. Na maturidade do casamento, deixavam recados junto aos objetos pela casa.
Agora, na velhice, ao invés de encontrarem os lábios, a boca vai de encontro ao ouvido do outro. Aproximam-se, pendem o tronco abaixando um dos ombros para o lado onde está o outro, para que um não precise falar muito alto e para que o outro escute o que for falado. Reclamam um do outro. Às vezes saem resmungando da conversa. Mas boa parte do que eles precisam é saber que o outro está ali, por perto. Agora, na velhice, eles aprenderam a conversar com o silêncio da presença.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Viver a decadência do corpo faz parte da vida. O desafio é envelhecer sem perder a dignidade.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 05/09/2015, Edição Nº 1371.

2 comentários:

Elenir Lopes disse...

"O difícil é envelhecer sem perder a dignidade" - lindo texto, Augusto, fiel, autêntico. Que pena que o tempo passe e deixe suas marcas nos seres humanos roubando-lhes as forças. Seria necessário que os mais jovens enxergassem nos mais velhos o que o tempo vai fazer com eles no futuro e procurassem mitigar as dificuldades que os velhos encontram. Mas eles vivem o presente como se não houvesse o amanhã e só quando começam a lhes faltar as forças, eles se recordam de que aquilo é um "deja vu", e não há mais tempo.

Augusto Amato Neto disse...

Concordo em gênero, número e grau, amiga Elenir! Obrigado pela visita na minha padaria.