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Arte de Weberson Santiago |
Tínhamos acabado de almoçar num sábado, meu avô Tino, com 94 anos, e eu.
Tomávamos um café enquanto ele contava uma história do passado, ilustrada com
uma foto antiga tirada na época do ocorrido. Papo-vai-papo-vem, questionei como
foi o começo do seu namoro com a minha avó Rosa, que infelizmente faleceu há
alguns anos.
Ele começou a descrever a paquera sutil em volteios ao redor da fonte
dos amores, na praça central de Mococa, os homens no sentido horário e as
mulheres no sentido anti-horário. Um namoro muito diferente dos que vemos nos
dias de hoje. A relação avançava a passos lentos como os de uma tartaruga. Era
uma eternidade para se pegar na mão. Relatou o pedido de casamento para o
sogro, a resistência dos irmãos. Pediu-me um minuto e foi para o quarto.
Voltou com uma caixa forrada do lado de fora com papel xadrez, desbotado.
As laterais da tampa levemente rasgadas pelo efeito do tempo, mas
cuidadosamente preservada inteira há quase setenta anos. Quando ele abriu,
percebi que a caixa estava cheia de cartas que eles trocaram durante o namoro.
Papeis envelhecidos, cor-de-café-com-leite. Dobrados em quatro. Posso
ver? – perguntei. Claro – respondeu. Abri a primeira, era dele para ela. No
papel tinham marcas redondas mais escuras por detrás da tinta. Perguntei o que
era. Ele disse que deveria ser a marca do perfume. Contou-me que não tinha
perfume quando era jovem, mas que vez por outra pegava a colônia do pai
escondido, molhava a ponta do dedo e encostava no papel. Pensei que o perfume
da carta deveria fazer a Rosa imaginar o cheiro do seu cangote. Não podendo
senti-lo de verdade, restava-lhe a imaginação. Palavras singelas,
descompromissadas.
Dobrei e guardei, retirando outra. Era dela pra ele. Comentava
amenidades. Alguns pontos com excesso de tinta sugeriam longos suspiros
enquanto ela escrevia. Fiquei encantado com aquelas cartas, viajei no tempo,
voltei para o início da história deles, mas não quis ver todas, nem ler todas
as linhas. Temia ser invasivo. O mais importante foi ter compartilhado da
intimidade dos meus avós, me senti privilegiado em ser uma espécie de
confidente do meu avô.
Quando fui embora de sua casa, no trajeto de carro, senti um calafrio na
barriga. Onde estão os cartões que a Natália me escreveu? – pensei. Não sabia.
Nunca me preocupei em recolher os bilhetes carinhosos, os mimos. Cheguei em
casa e comecei a procurar. Não achei nenhuma. Senti o peso da displicência. Lia
o cartão que ganhava e deixava sobre a mesa da cozinha ou na sala. Esquecia
dentro da sacola do presente. Valorizava o presente e abandonava o carinho do
recado.
Decidi que começaria a guardar estes registros de sentimento quando
ganhasse o próximo. Queria poder mostra-los aos meus filhos ou netos, como fez
o meu avô.
Os dias se passaram e alguns finais de semana depois do ocorrido a
Anelise teve dor-de-garganta e febre. Cuidávamos da pequena e a Natália me
pediu para que pegasse um lenço na sua gaveta de lenços para embeber no álcool
e colocar no pescoço da Ane. Enquanto ela dizia qual queria, eu descrevia os
que encontrava e vasculhava sua gaveta em busca do que ela queria. Foi quando
encontrei, lá no fundo, uma caixa vermelha, em formato de coração.
Abri por curiosidade. Lá estavam todos os nossos, bilhetes, cartões,
recados. Ela havia recolhido tudo o que eu larguei jogado e guardou. Respirei
aliviado por não ter sido fato consumado o desperdício imaginado.
Amar de verdade é ser um perito dos sentimentos. Amar é colecionar
provas do carinho. Ela me ama tanto que tolerou meu desleixo para preservar as
memórias do nosso amor.
| Mantenha o hábito de escrever um cartão, deixar um bilhete ou uma
carta. Mensagens reais valem muito mais do que as virtuais.
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3 comentários:
Parabéns pelo texto, Augusto.
Você me enche os olhos de lágrimas. Sempre fui relapsa, nunca guardei nada. Que pena, mas é tempo de ensinarmos os mais jovens a guardar.Bjs
Augustinho Carrara, emocionante...
Também temos guardado muitas coisas desde o início do nosso relacionamento, que já faz 29 anos.
Para mim o amor é como um camaleão que muda de cor para se adaptar as circunstâncias da vida e sobreviver sempre!
Abraço
Markinhos Machado
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