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Arte de Weberson Santiago |
Em família, bastam alguns segundos. E tudo o que ia indo
bem se torna uma grande confusão.
A Natália tinha acabado de acordar num domingo em que iria
trabalhar e ido direto para o chuveiro. Eu havia levantado um pouco antes e
estava as voltas com o café da manhã, imbuído da tentativa de aproveitar o
pouco tempo que teríamos juntos naquele dia.
Até que a pequena Ane, ainda ensonada e já sabendo que a mãe
iria trabalhar desde a véspera, foi até o banheiro, parou do lado de fora do
box e disse:
— Mãe, eu quero tomar banho com você!
Da mesma maneira que eu queria arrumar o café para aproveitar
a convivência, ela queria o banho para ficar um pouco mais perto da mãe.
Acontece que ainda nem eram sete horas de uma manhã fria, e o banho poderia lhe
render uma dor de garganta ou resfriado, preocupação excessiva e previsão improvável
já que o amor previne doenças quando correspondido. Quando negamos o pedido,
ela abriu o berreiro. Instalou a balbúrdia em nossos sentimentos apelando com o
uso do choro e do grito. A desordem havia tomado conta. O que deveria ser o
aproveitamento da única hora em família disponível se tornou um pesadelo. Birra
e choro da parte de Anelise. Culpa de trabalhar dias e dias seguidos, e ainda
estudar a noite, da parte da Natália. E eu tentando retomar o controle da
situação, já arrependido de ser autoritário e não ter deixado ela tomar o banho
com a mãe. Até tudo se acalmar, o relógio marcava a hora da Natália sair.
Foi a Natália dobrar a esquina e a Anelise estava calma e distraída
enquanto contrariava as linhas retas das pautas do seu caderno com rabiscos
coloridos. Foi então que eu entendi o que havia acontecido. Ela sabe muito bem ficar
sem a mãe. A Natália trabalha bastante desde muito antes dela existir. Ela aprendeu
a distância pouco depois que nasceu. A birra não era o sintoma da incapacidade de
suportar a ausência. Era um manifesto de insatisfação pela vida exigir o
contrário do que ela gostaria que acontecesse: querer passar um dia juntas.
O domingo que a Natália trabalha para mim já é uma segunda-feira.
Eu disparo a preencher o tempo com períodos de trabalho e alguns momentos em
família. Não é a mesma satisfação de quando estamos todos lá, fazendo as coisas
que não couberam na semana, muitas vezes cada um num cômodo, mas sabendo que o
outro está disponível dentro de casa. Já reparei que esse domingo em família é
o que me renova a disposição pra começar mais uma semana. A Natália diz que
sente o mesmo. Fica difícil deixar de lado a insatisfação dela ter que
trabalhar no dia sagrado.
O mundo funcionava quando as coisas ainda não abriam aos
domingos. Se eu pudesse, escolheria por todo mundo. O acesso as compras
restrito até o sábado. O almoço da minha avó saía no domingo quando não tinha
supermercado aberto. Ninguém precisava sair pelado porque a loja de roupas do
shopping não estava disponível no domingo. Se eu conseguisse fechar o comércio noste
dia, acredito que as pessoas seriam mais felizes, talvez até salvaguardaria o
orçamento das famílias do endividamento. Os funcionários não atenderiam com tão
pouco caso quando a vontade falasse mais alto e ele não quisesse estar ali naquele
dia. Enquanto meu devaneio não se faz realidade, me sobra a opção de
administrar os efeitos das ausências da Natália.
O que a Anelise precisa aprender é a lidar de uma forma
diferente com a insatisfação de ver a sua mãe saindo pro trabalho no fim de
semana. Aprender a aceitar a carência da companhia. Eu entendo bem o que se
passa com ela. No começo do meu namoro com a Natália, quando ela tinha de
trabalhar no domingo, eu cavava algumas brigas no sábado a noite. No dia
seguinte, acordávamos separados por uma parede de travesseiros nos cantos da
mesma cama, com o corpo em formato de parênteses contrariados, cada um pra um
lado.
Eu prolongava a indiferença e o conflito economizando no bom
dia. Enquanto sofria com os sentimentos da briga depois que ela havia saído,
parei pra pensar porque eu fazia isso. Minhas atitudes não eram para para apaziguar
os ânimos. Eu não queria entrar em acordo. Queria que a raiva dela que eu havia
criado e nutrido me fizesse a companhia que ela não poderia me fazer. Entrar em
consenso só aumentaria a saudade. Depois que eu percebi isso, passei a
enfrentar o impedimento do amor de maneira menos infantil. Passei a cozinhar
nos dias em que estou de folga e ela trabalha. Entre procurar a receita nos
livros, comprar os ingredientes e preparar a comida, me distraio da saudade.
Quando ela chega e encontra o jantar, vejo que consegui transformar toda a
falta que ela me fez em temperos e na combinação de ingredientes.
A Ane precisa achar uma estratégia. Como a que eu arrumei
para os momentos que sinto falta dela quando ela passa alguns dias na casa das
suas avós, longe de mim. Eu roubo um CD da sua estante e coloco no meu carro.
Durante a correria entre os compromissos de trabalho, ligo uma das suas músicas
preferidas e imagino os percursos que fazemos juntos, cantando. É assim que eu
não transformo mais as minhas insatisfações de saudade em confusões. Eu só não sei
como eu posso ensinar isso pra ela sem que ela passe a dar falta dos seus
discos preferidos.
| Amadurecer não é deixar de
ter sentimentos infantis. Amadurecer é voltar a ser criança para encontrar na
espontaneidade a melhor forma de lidar com estes sentimentos.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 29/09/2012, Edição Nº 1219.
