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Foto de Augusto amato Neto |
O boteco é o lugar onde se passa a vida e onde a vida passa.
André frequentava a roda de samba do Bar do Chorinho desde quando estava
na barriga de sua mãe. A batida do coração da Angélica se juntava a batida do
tan-tan formando o conforto mais barulhento que um bebê poderia experimentar.
Angélica ficava feliz e rodopiava ao ver o samba tocar e André sentia essa
felicidade pulsante de dentro de seu ventre.
Foi lá, naquele bar, que seus pais se conheceram. Jader cobiçou Angélica
desde a primeira vez que lhe viu com as amigas. Naquele dia já imaginava suas
mãos percorrendo as suas coxas como as mãos escorregam pelo pandeiro.
Foi naquela roda de samba que Jader e Angélica deram seu primeiro beijo.
“O mar serenou quando ela pisou na areia. Quem samba na beira do mar é sereia”
foi o verso que embalou o pega na porta dos banheiros.
Algumas semanas depois André foi concebido na saída da roda de samba,
numa noite quente de verão, quando os dois passaram a primeira noite juntos na
casa dos pais de Jader. A gravidez caiu como uma bomba na vida dos dois. Jader
nunca havia mantido um relacionamento por mais de três meses. Angélica sempre
quis se casar, mas não sabia se um dia iria querer ser mãe. E quando se lembrou
disso já era.
Os dois resolveram passar por cima dessas individualidades e tentaram
ficar juntos em nome do menino. Falando em nome, o pai queria chama-lo de Noel,
para homenagear o Rosa. Mas a mãe foi contra. Imaginou que esse nome seria
motivo de chacota pelos colegas. Escolheu e bateu o pé para chama-lo de André.
O pai cedeu.
André esteve de volta no Bar do Chorinho depois que saiu da barriga aos
seis meses, na roda de choro de segunda-feira. Voltava todo mês nas rodas de
samba de quinta, sexta ou sábado. Depois que completou um ano, seus pais
praticamente voltaram a frequentar a roda como antes de ter o menino.
Mas como a vida não é feita somente de samba-exaltação, a letra do samba
entristeceu com os problemas de relacionamento. Jader bem que tentou se
controlar e se manter fiel a Angélica, mas teve lá suas recaídas. Angélica não
se sentia segura, mesmo não tendo prova cabal da infidelidade do amado.
As brigas por motivos levianos eram frequentes. A primeira briga que
levaram pra roda de samba foi quando uma angolana de sessenta e poucos anos
tirou Jader pra dançar. Conhecida como a Raimunda do samba. Feia de cara, mas
boa de bunda. Não tinha a intenção de roubar homens comprometidos, só de se
sentir a musa do samba. Pediu licença a Angélica para dançar com seu homem.
Angélica consentiu, mas se contorceu na cadeira vendo o marido dançar com
outra.
Ela amarrou a cara, emburrou. Na hora que ele se sentou, a discussão
começou. Jader não se conformava com o ciúme. Ela foi ficando cada vez mais
irritada. Os dois foram embora antes da roda terminar, carregando André e discutindo
pelo caminho. As brigas e discussões se intensificaram, André já tinha cinco
anos. Decidiram então se separar.
O samba-canção deu lugar ao samba-choro. A partir daquele momento, Angélica
preferiu evitar o samba para não reencontrar o Jader. O menino sofreu. A roda
de samba era a sala da sua casa. E não faz sentido ocupar a sala se a família não
está completa. Sentia como se abandonasse a mãe ao ir para o samba só com o
pai. André pegava a mãe chorando pelos cantos da casa aos finais de tarde
quando costumava estar na roda.
Um dia, enquanto estava na roda com o pai, ouviu tocar um samba escrito
em 1948 por Aníbal e Eden Silva, que de vez em quando ele ouvia tocar na roda
ou em casa. Largou o jogo do tablet
na mesa e foi pra junto da roda, cantar: “Um dia encontrei Rosa Maria, na beira
da praia, a soluçar. Eu perguntei o que aconteceu, Rosa Maria me respondeu: o
nosso amor morreu.”
Foi a única vez que André deixou de sentir a falta da presença da mãe.
Era como se ela estivesse presente na roda de samba com a música. A partir
daquele dia ele resolveu dividir. A roda toca das 19 às 22 horas. No intervalo
das 20:30 ele vai embora fazer companhia para a mãe.
E toda vez que toca “Rosa Maria” e só quando esta música toca, ele se
levanta e vai até a roda cantar.
| Uma
boa música pode ser um remédio para curar uma dor.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 23/01/2016, Edição Nº 1391.
* Esta é uma crônica de ficção baseada na livre criação artística e sem compromisso com a realidade. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.