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Arte de Weberson Santiago |
Há alguns anos atrás, alguém se incomodou com a corrente que perfurava a
grande árvore e a prendia ao muro na Ladeira da Memória, centro da cidade de
São Paulo. Já se vai muito tempo desde 1888 e só agora a escravatura do espécime
Ficus organensis vem a ser questionada. A princesa Isabel do século XXI a favor
da liberdade da natureza foi Cristina Moreno de Castro, jornalista que
questionou a corrente no impresso Folha de São Paulo.
Localizada em meio a monumentos no vale do Anhangabaú, ironicamente
ninguém na Ladeira da Memória é capaz de resgatar o motivo da colocação dos
grilhões que impedem, há mais de vinte anos, a fuga da árvore da Rua Xavier de
Toledo. Juntamente com o obelisco, a escadaria e o chafariz, a árvore de quinze
metros de altura faz parte do largo que foi inaugurado em 1814 e é patrimônio
histórico tombado.
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Foto:
Dornicke
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Neste tempo em que a cidade era um amontoado de casas de taipa de pilão,
o português Pedro Luiz de Souza Machado foi um dos que veio com o grupo dos
jesuítas para desbravar as terras brasileiras. Quando passaram por São Paulo,
parte do grupo se encantou com o clima fresco semelhante ao europeu e fundaram
o Real Collegio, grupo do qual fazia parte Souza Machado. O engenheiro Müller
contou com a disposição de nobres Senhores da época para a construção do Largo
da Memória. Souza Machado inclusive cedeu escravos para trabalhar para o mestre
pedreiro Vicente Gomes Pereira, subordinado de Müller.
Por decreto de 08 e carta de 13 de Fevereiro de 1812, Souza Machado teve
a concessão do título de Conde de Lousada, como ficou conhecido na cidade desde
então. A obra de pedra de cantaria constituía o obelisco de onde emergia de uma
bacia de alvenaria com grades de ferro, que servia como reservatório da água.
Muitos viajantes cruzavam a Ladeira para encher os cantis em uma bica e
prosseguir o trajeto. Numa das tardes no Largo, o Conde de Lousada pressionava
o lenço contra a testa enquanto avistou de longe uma jovem dimanada na lomba de
um burro. Transporte típico da época, a dama de companhia que conduzia o
quadrúpede parou para lhe dar água na Ladeira. Olhares tergiversos provocaram
as mais sublimes sensações no Conde e na jovem. Era Leonora de Melo Guimarães,
filha de portugueses que se tornaram cafeeiros e nos primeiros anos do século
seguinte ocuparam a Avenida Paulista, a primeira via planejada da capital.
No fluxo das pessoas pelo Largo da Memória, galanteios e gracejos
aproximaram o Conde cinquentenário da jovem Leonora. Na véspera da inauguração
do alargamento da Estrada do Piques e dos monumentos de pedra que constituíram
o Largo da Memória, na presença de Müller, de Gomes Pereira, do Conde de
Lousada, de Leonora, de um grupo de escravos e de alguns transeuntes foi
plantada a figueira. No dia seguinte, 12 de Outubro de 1814, autoridades do
governo inauguraram a obra em uma solenidade oficial. O pedido de casamento do
Conde para o pai de Leonora se deu alguns meses depois e o casamento foi
sacramentado por Dom Mateus de Abreu Pereira em 11 de Outubro de 1815, um ano
após o plantio da Ficus, na Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada na
Rua do Carmo. Em 1816, nasceu o primeiro filho, batizado com o nome do pai.
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Foto: Felix Lima/Folhapres |
Acontece que Leonora considerava enfadonha a vida de Condessa e não
demorou a se envolver em um caso perigoso. Encantou-se com os rituais Iorubás,
realizados pelos escravos e que frequentava quando o Conde estava fora de casa.
Acabou por envolver-se com um escravo, com o qual se encontrava às escondidas. O
Conde de Lousada, desconfiado, colocou um capanga no encalço da amada. Quando
se percebeu na iminência de ser descoberta e sob o pretexto de sua vida
monótona, lhe seduziu e partiu com o jagunço que deveria constatar a traição,
tendo levado consigo parte do dinheiro do Conde.
A tardia entrega ao amor fez com que a traição consternasse a
consciência de Pedro Luiz, o Conde de Lousada. Desgostoso da própria vida e da
ingratidão de sua "Nôra", encaminhou o filho para estudar em um
colégio interno. Sentia fortes dores de cabeça todos os dias, sem encontrar
alguma maneira de se sentir melhor. Num momento de desespero, enquanto uma
escrava lhe punha compressas de água morna na testa, levantou-se
repentinamente, reuniu os escravos do lado de fora da casa e mandou que eles,
os únicos que lhe foram fiéis, acorrentassem a figueira com os grilhões do
porão, na tentativa de livrar-se das correntes de sua memória, que lhe
apertavam a cabeça e foram responsáveis pelo seu adoecimento e depois pela sua
morte.
Homem influente na sociedade paulistana da época, seus amigos se
encarregaram de aumentar os elos da corrente a cada ano, para que a árvore
pudesse crescer sadia. Durante um século e meio, o governo municipal de São
Paulo interpretou as correntes como uma necessidade de segurança para que a
árvore se mantivesse de pé. No meio do Regime Militar Brasileiro, por volta de
1970, a corrente parou de ser trocada e a árvore continuou a crescer em
espessura, englobando internamente parte da corrente. Como num grito de
liberdade da árvore, recentemente um dos lados da corrente se rompeu e perdeu a
função inicial.
Após uma vistoria técnica nos primeiros dias de 2011, a figueira
centenária do largo da Memória foi finalmente libertada. As correntes que a
prenderam por décadas ao muro da Xavier de Toledo foram cortadas por técnicos
da Prefeitura. Ela não tinha risco de cair e a corrente que a prendia não tinha
mais razão de ser para os técnicos. Sabemos nós que a razão de ser era para a
memória do Conde de Lousada, que talvez agora tenha sido também liberta. Apenas
o pedaço que já estava dentro da árvore não foi removido, porque isso poderia
causar ferimentos no tecido da figueira e deixá-la vulnerável a doenças e
pragas.
No largo da memória, as correntes emocionais imperceptíveis por quem
percorre o passeio são as mais difíceis de remover.
| Em
tudo o que for acorrentado haverá de restar alguma cicatriz.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 19/09/2015, Edição Nº 1373.
