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Arte de Weberson Santiago |
O ombro é o parapeito do nosso tronco. Nele podemos colocar um vaso de
plantas, um papagaio, a cueca pra secar, um lenço ou cachecol e até um monte de
problemas. É, nem só de graça vive o ombro. A desgraça também pode repousar
sobre eles.
No relacionamento interpessoal, fica difícil quando o vizinho não
percebe, na divisão dos muros dos ombros, onde termina a propriedade dele e
começa a minha, como se os ombros fossem colados. Então, percebo que os fardos dos
outros estão no meu parapeito, e o pior, que os carrego há certo tempo. Tem
gente que é especialista em vomitar seus problemas e despejar a carga nos
ombros alheios.
Se tem algo que eu respeito nos ombros dos outros, esse algo é a
corcunda. A corcunda é uma configuração de ombro distorcida chamada pelos médicos
de cifose. Em primeiro lugar, meu respeito se dá por observar que ela é fruto
da experiência de vida. Em segundo lugar, porque ao contrário da barriga, a
corcunda não impede.
Hoje vi uma senhora de corcunda carregando compras a passos largos, com
um semblante feliz. Em outros tempos de caminhada, cruzava diariamente com um
casal de velhos com corcovas arqueadas e que cumpriam o trajeto religiosamente.
Um barrigudo não mantem tal disciplina.
A corcunda é uma deformação inteligente do corpo que acompanha o
movimento da vida desde a juventude até a velhice.
Quando jovens, passamos boa parte do tempo sonhando, olhando para as
nuvens, fantasiando o futuro. Com o amadurecimento, somos obrigados a deixar
uma parte dos sonhos de lado para conseguir concretizar um ou alguns deles.
Então, somos obrigados a abaixar o olhar e mirar o horizonte, numa visão mais
realista. Porém, doses de realidade trazem consigo responsabilidades que
sobrecarregam e dificuldades que pesam nos ombros.
Correndo atrás das metas que vislumbramos no horizonte, atropelamos as
coisas e as pessoas com nosso excesso de expectativa, ficamos afobados porque o
tempo das realizações é diferente do tempo que estamos dispostos a esperar. Com
os fardos que abraçamos em nossos caminhos e decidimos carregar, mais as cargas
que depositamos nas costas sobre os ombros, o nosso corpo esculpe a corcunda
para tentar dar suporte às nossas experiências.
Na velhice, a corcunda obriga a olhar para o chão, para as sutilezas do
caminho que os jovens deixam passar batido. Aí está a beleza: construímos
nossas corcundas correndo atrás do futuro e preocupados com o que fizemos no
passado e o nosso corpo nos obriga, com a idade, a olhar mais para o presente.
Por isso o velho é sábio: pondera o que fala na medida do que o jovem é
capaz de aproveitar com seu nível de maturidade, não se deixa abalar como fazia
na juventude, dá a importância exata que as coisas merecem, pois o tempo que
tem pela frente é precioso demais para ser dispensado em detalhes irrelevantes.
A corcunda ensina a não sofrer com qualquer coisa e a aproveitar mais o que a
vida oferece aqui e agora.
Por isso, quando eu ficar velho, faço questão de ter uma corcunda. Se
não for pedir muito, gostaria também de ter uma bengala e um bom par de
suspensórios. Explico. O cajado é para dar suporte às pernas. Já terão andando
muito por aí e sustentado o tronco por muito tempo, e de repente também para dar
bengaladas quando for necessário apressar ou corrigir alguém, mas os músculos
não tiverem mais o vigor suficiente. O par de suspensórios é por precaução. Se
as calças caírem, demorarei muito para levantá-las. Não se mantem a dignidade
com a bunda exposta.
| Quando ficar velho usarei minha
corcunda como prateleira.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 03/05/2014, Edição Nº 1302.