![]() |
Arte de Augusto Amato Neto |
Lembre-se
da última vez que você comeu uma pizza e que um ingrediente invadiu um pedaço
da pizza do outro sabor. O que você fez?
Deixou
de comer o pedaço da pizza de muçarela por causa da ervilha da fatia portuguesa
que escorregou para a vizinha? Ou simplesmente retirou a cebola espaçosa que
não respeitou o limite da calabresa e invadiu o frango com catupiry?
Nós,
humanos, somos como pizza meio a meio. Não respeitamos os limites do próprio
pedaço e invadimos o pedaço do outro. É estar lado ao lado que começa a
mistura.
Eu sou
um invasor de pedaços especialista. Não fico satisfeito em me pôr no centro da
casa, controlando o vai e vem da Natália e da Anelise. Quando estou trabalhando
no computador, não as perco de vista. E quando percebo, já estou atrás de uma
delas, invadindo seus espaços e me metendo nas coisas que elas estão fazendo.
Se a
Natália está lavando os pés de alface, pergunto como ela deixou de molho e como
fez pra lavar. Não me contento em saber o que aconteceu, preciso sugerir outra
maneira de fazer. A Natália fica louca de raiva.
Eu que
não suporto que belisquem um ingrediente quando estou preparando um prato me
intrometo no modo de preparo de uma receita quando a Natália está cozinhando.
Ela conta
até dez – vinte ou trinta – pra não discutir, mas não adianta. Depois de um
tempo lá estou eu invadindo seu espaço e me metendo onde não deveria.
Com a
Anelise é a mesma coisa, pergunto como foi o dia, o que ela fez na escola, se
fez a lição e ainda confiro a apostila e o caderno de recados. Me intrometo em
suas brincadeiras, interrompo as suas ligações no celular de brinquedo – e
converso com o personagem do outro lado – para avisar que ela não pode
conversar pois está na hora de tomar banho.
A família
é o impeditivo da privacidade. Não existe respeito à intimidade em um lar.
Família é uma pizza dividida em oito sabores que se misturam como se o
entregador tivesse dado uma volta no globo da morte entre a pizzaria e a sua
casa.
E quando
a mistura é regra, a divisão fica praticamente impossível.
O
intercâmbio de meias nas gavetas é um exemplo de como é difícil dividir. Não
importa que eu calce 43 e a Natália 34. As meias têm pés e trocam de gaveta.
Andei
encafifado com uma toalha que, mesmo estendida no varal, nunca secava. Nem o
sol escaldante me fazia encontrar a toalha seca no final do dia.
Resolvi
investigar. Já imaginava uma visita invadindo a casa durante o dia para usar
minha toalha. Até que descobri que a Natália e eu estávamos usando apenas uma das
toalhas idênticas, enquanto a outra igual permanecia seca, dependurada no
banheiro. Aí foi minha vez de contar até dez – vinte ou trinta – pra não
discutir. Eu não aguento e vou atrás dela pela casa.
Eu seu,
eu sei, eu sou um chato. Mas por trás da minha chatice existe um interesse em
participar, em conviver, em interagir. No fundo, minha chatice é um excesso de
disposição.
Aqui em
casa, toda discussão termina em pizza. Literalmente. Massa fina, sem borda
recheada. Meia do meu gosto, metade escolhida pela Natália. E a pizza sempre
chega com o recheio invadindo o pedaço do outro sabor.
| Se a chatice é o recheio da
minha pizza, o carinho é o azeite.
|
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, contracapa (p. 2) do primeiro caderno, 31/08/2013, Edição Nº 1267.
