Se eu lhe contasse que a primeira foto retrata minha
infância, o que você pensaria a meu respeito?
Poderia dizer que eu já demonstrava sinais de ser um escritor
desde pequeno. Explorando o ambiente ao redor, pensaria que entre uma lauda
datilografada e outra, exercitava minhas habilidades musicais no órgão ao
fundo.
Isso se fosse eu que estivesse na foto. Na verdade é meu
amigo Cleber Navarro, que resolveu tirar alguns retratos da gaveta e publicar
no facebook.
Eu fiquei com inveja da foto. Achei a composição estilosa. Um
ícone dos anos 90. A fruteira cromada com frutas de plástico típicas daquela
época, a toalha de crochê igual a da mesa de jantar da casa da minha avó, a
máquina de escrever azul calcinha.
Curti tanto a foto e seus detalhes que a mãe do Cleber, Dona
Tita, me mandou uma toalha de crochê igual a da foto. Eu abri o baú da sala,
peguei minha máquina de escrever laranja e tentei reconstituir a cena. Já que a
primeira foto não era minha, resolvi produzir uma foto para ter saudade dos
tempos de hoje daqui vinte e poucos anos.
Quando eu ficar velho, vou poder usá-la para contar aos meus
netos que fui testemunha da passagem da máquina de escrever ao computador. Vou
tentar descrever o que era um computador 486. Expor como era o uso da
tecnologia antes do notebook. Florear histórias de um tempo sem tablet.
Talvez a lembrança tenha sido aprimorada depois da invenção
da foto. A foto é o registro do que já passou, a prova do que aconteceu e salva
em imagem o detalhe que possivelmente seria esquecido. Enquanto eu arrumava os
objetos para reconstituir a cena, atraí pra perto a minha gata persa que se aninhou
na cadeira da frente e junto veio a Anelise, que se encantou com a máquina de
escrever:
— Pra que que serve isso que tá em cima da mesa?
Aproveitei a ocasião e ensinei a Ane a usar o equipamento e
tirei uma foto da sua primeira experiência datilográfica.
As fotos que escolhemos para ocupar um álbum são aquelas que
tem momentos que nos fazem sentir orgulho, que nos trazem de volta boas
lembranças, que evocam sentimentos positivos e que registram poses que passam
pela nossa própria crítica.
É mais fácil escolher os melhores momentos do que encarar as
fotos que remetem as fases mais difíceis de nossa vida. Quem nunca teve vontade
de rasgar uma foto? Picar o papel para ver se apaga a memória.
Eu já censurei algumas fotos, coloquei a reprovada atrás da
permitida no saco plástico do álbum. A foto revela. Se meu contrangimento não pode
ser revelado, eu escondo a foto.
No tempo das máquinas analógicas a surpresa era maior. Não
havia como antecipar o resultado. Era impossível corrigir a imperfeição da
expressão. Não cabia o imediatismo.
Quem sabe seja este o motivo das fotos de si mesmo não serem tão
frequentes quando as máquinas fotográficas eram analógicas. O que faz alguém
fazer pose na frente do espelho é a confirmação da sua imagem. É o resultado
rápido na tela digital. É a possibilidade de mexer um pouquinho na pose,
acertar uma mecha de cabelo. Isso se repete até que a foto atinja os critérios
próprios, depois de uma dezena de fotos.
Fotos antigas costumam chamar a atenção. Percebo que o
resgate é prazeroso para quem viveu a época fotografada e muito curioso para
quem sequer havia nascido e não imagina como era a vida naquela época.
Não se contente em resgatar um retrato antigo. Divulgue-o.
Multiplique a nostalgia. Conte histórias sobre o que acontecia naquele momento.
Se puder, reconstitua a cena. Chame as pessoas da foto, volte ao mesmo lugar.
Repita a pose. Reproduza a foto. Não tenha receio de parecer bobo.
Reviver é atualizar o passado para curtir o presente.
Reviver é atualizar o passado para curtir o presente.
| Você percebe que já não é tão
jovem à medida que se pega surpreso com o quanto alguém que você conhece
cresceu na foto ou quando percebe pela imagem que viveu uma época que já não
é mais.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 27/10/2012, Edição Nº 1223.
