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Arte de Weberson Santiago |
Parei para observar quatro partes do dia que são como surtos.
Pessoas cruzam a cidade para chegar ao seu destino e cumprir seus compromissos.
Tive de me obrigar a parar para observar, porque na maioria das vezes faço
parte do impulso repentino da correria. Estou me deslocando de um lugar para o
outro enquanto todo mundo está indo de um lugar para o outro. Tirei uma foto de
cada surto da coletividade para tentar mostrar o que acontece com as pessoas.
A primeira foto é o surto da manhã. Falo da transição entre a
noite e o dia, da alvorada. O dia amanhece e obriga a cair da cama. A Lúcia
programa o despertador para às seis horas da manhã, mas se acostumou a acordar às
quatro e meia só para confirmar que tem mais de uma hora de sono. Isto porque
às seis da manhã começa a correria. Preparar o café da manhã, trocar as
crianças, leva-las pra escola e ir trabalhar. Quando Lúcia está dentro do carro
com os meninos e da ré na garagem ela é engolida pelo surto. Só pra sair da
garagem é uma novela. Quando não são os carros passando em ritmo de corrida, é
a bicicleta na contramão ou o transeunte cruzando a garagem fora da calçada.
Interessante observar que, pela velocidade, ninguém parece recém-acordado, e
sim muito atrasado.
A segunda foto é o surto do almoço. É quando a gente se pega
incomodado de ter de deixar o que estava fazendo por uma hora, ainda que seja
para satisfazer uma necessidade primordial: a fome. Você descobre que trabalha
demais quando já não é capaz de perceber, pelas reações do seu corpo, a hora de
se alimentar. Neste segundo momento de desespero do dia, é preciso buscar as
crianças na escola e levar para almoçar. Toda semana o André fica bravo com seu
filho porque ele vive a convidar algum amigo para ir brincar em casa sem a sua
permissão. O André precisa reverter o combinado, apressadamente, na porta da
escola e depois dá uma bronca no menino no caminho para casa. Mastigar fica
incompatível com a correria, a gente engole a comida para arrumar tempo para digerir
mais algumas pendências. O André aproveita a volta do almoço pra passar no
banco antes de deixar seu filho no primeiro compromisso da tarde. O problema é
enfrentar o pequeno congestionamento nas esquinas do centro da cidade, já que
ele não é o único que se desloca nesse horário.
O lusco-fusco marca a terceira foto do anoitecer. Para alguns
é o fim da jornada de trabalho, para outros o início. Para a maioria, o fim de
um dia produtivo e a hora de cuidar da casa ou de ir estudar. Mariana trabalha
todos os dias das sete às dezessete horas. Para ela, no intervalo da saída do
serviço até o início das aulas na faculdade, cabe um banho e um lanche rápido.
Ela estuda em outra cidade e a van sai uma hora antes da aula começar. Lucas
aproveita esse intervalo para para passar no supermercado. O fim de tarde é o
horário de pico para fazer as compras. Este terceiro surto do dia é definido
pela certeza de pegar fila no caixa do supermercado ou no posto de gasolina
para abastecer o carro.
Na quarta foto, o vai-e-vem cai pela metade. Depois das dez
da noite, uma parte das pessoas já se recolheu em sua casa e não pretende por
os pés pra fora até que um novo dia comece. Dentre essas, uma parte está jogada
na cama ou no sofá, enquanto a outra parte ainda está correndo, só que dentro
de casa para terminar o que falta antes do dia chegar ao fim. E é nesse
momento, que os estudantes do período noturno saem aos bandos das escolas da
cidade, que as vans de universitários devolvem os futuros profissionais em suas
casas.
Um curto período de tempo de silêncio até que este álbum
recomece na primeira foto.
Num dia tão fragmentado, o complexo é fazer uma coisa de cada vez pensando
naquilo que está fazendo, e não no que
se tem pra fazer depois. Difícil também é ocupar todos os nossos papeis na hora
certa – o do pai, o do chefe, o do trabalhador, o do marido, o do amigo ou os
outros papeis que vamos ocupando vida afora – ao invés de ser uma média de
todos esses, sem ser nenhum. Há o risco de trocar o papel da situação – ser pai
do amigo, o chefe da mulher e o funcionário da filha e por aí vai. Em cada
parte do dia, o difícil mesmo é ser inteiro.
| As cenas não fotografadas são mais definitivas para a nossa vida
do que as que encontramos em nossos álbuns. O que se repete todos os dias é o
que constrói o futuro.
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