sábado, 8 de setembro de 2018

O Lugar e o Olhar





Quando a Natália e eu fomos montar a primeira sala de atendimentos de psicologia só nossa, sem compartilhar com mais nenhum outro profissional, escolhemos cada um dos móveis com muito cuidado. Cheguei até a fazer uma planta no papel e recortar os móveis em escala para ver quais combinações ocupariam melhor no espaço.

Era a primeira vez que não usaria poltronas idênticas em minha sala de atendimento, o que foi usado na minha primeira década de clínica como estratégia de promover igualdade numa relação que nunca é igual, já que somos os especialistas que supostamente sabem de tudo e até chegamos a ter, na imaginação dos clientes, a capacidade de ler seus pensamentos e sentimentos, enquanto o cliente é alguém em sofrimento e, por isso, em situação vulnerável.

A psicoterapia é uma relação humana de troca. Para que possamos ajudar alguém, precisamos nos aproximar e criar um vínculo, o que chamamos de relação terapêutica.

Como resultado de um amadurecimento profissional, havia decidido que deixaria a responsabilidade de acolher e propiciar uma boa relação terapêutica “somente” à minha postura profissional e às minhas estratégias terapêuticas ao invés de confiar na simetria das poltronas como ingrediente essencial. Escolhemos uma poltrona confortável para o terapeuta e um sofá bem espaçoso e aconchegante para os clientes.

Quando os móveis foram chegando na nova sala, constatei que a poltrona Charles Eames que escolhemos para o terapeuta era um tanto quanto mais baixa do que o sofá dos clientes. Isso me incomodou. Fiquei incomodado com a diferença de altura porque gosto de olhar de igual para igual para com meus clientes.

Após os primeiros atendimentos, comentei com a Natália que estava cogitando mandar fazer uma estrutura de MDF para colocar a poltrona em cima e elevar a sua altura.

No dia seguinte a Natália me disse que considerava que a poltrona não era menor por acaso. Que ficar em um patamar abaixo da altura do olhar de nossos clientes poderia ter algumas vantagens. Questionei quais eram. Ela me disse que as pessoas que chegam deprimidas tendem a ter um olhar mais cabisbaixo e uma perda do tônus muscular na postura. Estarmos em um nível mais baixo nos permitiria observar melhor as expressões faciais e manter contato visual com estes clientes. Além disso, defendeu ela, aquelas pessoas muito egocêntricas e arrogantes – popularmente chamadas de “nariz em pé” – seriam obrigadas a “baixar o nariz” para receber nossos feedbacks.

Refleti e dei razão a ela. Percebi que eu queria mudar, mas estava inseguro com o risco da mudança, com medo de lidar com o diferente e com dificuldade para aceitar o novo. Embora esses sentimentos nos acompanhem em qualquer situação de mudança, precisamos passar por eles para conseguir mudar.

Se eu quero que meus clientes mudem de comportamento, fico em melhor posição de ajuda-los nesse processo quando também sou capaz de mudar e lidar com as consequências da mudança.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| O autoconhecimento é uma via de mão dupla. Quando eu ajudo o outro a se conhecer, passo a conhecer melhor como posso ajudar.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 08/09/2018, Edição Nº 1528.

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