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Arte de Weberson Santiago |
Camarotização é um neologismo que define a tendência a manter segregados
os diferentes estratos sociais. Se a palavra camarotização é nova, o fenômeno
social de divisão de classes está presente em toda a história da humanidade.
Por volta do século V d.C., com a queda do Império Romano houve uma
série de migrações na região Orientas e Ocidental da Europa. Os povos migrantes
ficaram conhecidos como bárbaros. Bárbaro, no grego antigo, significava
estrangeiro. Para os romanos e, posteriormente, para outros povos, eram os que
pertenciam a outra raça ou civilização e falavam outra língua que não a deles.
Os bárbaros eram considerados invasores das cidades, que vinham competir com o
povo, interferir na cultura, trazendo concepções políticas diferentes. Os povos
bárbaros foram, portanto, invasores dos camarotes do império romano. Este
movimento de invasão fez com que nobres deixassem as cidades e fundassem os
feudos em áreas rurais. Os feudos também eram uma organização camarotizada e,
principalmente, determinista. Não era possível nascer entre os servos e ganhar
uma grana para frequentar o camarote mais adiante. Quando os servos atravessavam
a ponte para o manso senhorial, tinham que pagar pedágio, exceto quando para
lá se dirigiam a fim de cuidar das terras do Senhor Feudal. Seria o equivalente
a seguinte condição na atualidade: para frequentar o camarote é preciso ter
dinheiro suficiente para comprar a pulseirinha, exceto se você for um dos que
trabalham no camarote.
No português contemporâneo, o bárbaro significa rude e grosseiro.
Podemos considerar que toda pessoa que pertence ao lugar onde ocupam a maioria
das pessoas – o povo – e consegue ter acesso a um lugar privilegiado – o
camarote – passa a ser vista como um invasor – alguém que representa outro
grupo, com costumes diferentes dos frequentadores do camarote – e vem a sofrer
algum tipo de rejeição – mínima ou máxima – dentro do camarote. Assim como os
povos invasores do Império Romano incomodaram as classes mais altas, alguém que
se eleva socialmente na atualidade e tem acesso a um camarote incomoda os
indivíduos já pertencentes ao grupo seleto. Desta questão podemos concluir que:
[1] um camarote só tem valor se existe uma área externa onde estão os que têm
menos privilégios; [2] não pode existir lugar para todos no camarote porque se
todos estão no camarote, o lugar deixa de representar o acesso a regalias
diferenciadas e [3] quem está fora quer entrar e quem está dentro não quer que
todos entrem.
Este contexto Europeu desembarcou no Brasil com os colonizadores
portugueses. A diferenciação de classes esteve presente na dominação dos
indígenas, no regime da escravidão e na história da Igreja em nosso país. As
igrejas coloniais seculares ainda preservam em sua estrutura física áreas
isoladas nas laterais do altar onde se colocavam os nobres nas celebrações
religiosas. Sim, há muitos séculos atrás na Igreja já existiam os camarotes. Os
cinemas e teatros também tinham camarotes.
Nossa sociedade democrática e capitalista está calcada na divisão de
classes, ou seja, precisa de alguma forma de camarotização para continuar
funcionando. Determinada pelas classes em constante movimento, a ascensão
financeira permite acesso a determinados camarotes (restaurantes, viagens,
serviços), que são inacessíveis à classe inferior. Entretanto, em relação a uma
classe acima, há algum tipo de cerceamento no acesso a camarotes mais caros. A
separação física de classes sociais vem tornando novas formas na atualidade, predominando
um caráter individualista na tentativa de obtenção de acesso aos camarotes.
Cada um por si e a sorte está lançada para todos.
Na teoria, ninguém é superior e ninguém é inferior em relação aos outros
seres-humanos. Na prática, todo mundo faz força para se elevar, assim como também
se esforça eventualmente para diminuir outrem. Difícil é reverter as
consequências de tantos séculos de camarotização e imaginar uma
descamarotização se tornando realidade, sobretudo quando não existe iniciativa grupal
nesta direção.
| Você é o selfie que você tira no camarote que
você frequenta.
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