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Arte de Weberson Santiago |
Passamos boa parte da vida em volta da mesa. Na cozinha, na
copa ou na sala de jantar. Quadrada, redonda, retangular ou oval. De madeira,
de granito com pernas cromadas ou de tampo de vidro.
Existe um momento que eu considero sagrado na minha vida e
ele ocorre em volta de uma mesa. É o café da manhã aos domingos ou feriados com
a Natália e a Anelise. Eu geralmente acordo primeiro e preparo a mesa. Depois, acordo
as duas. A Natália e a Ane vão à padaria e voltam com alguma flor colhida pelo
caminho. É o toque final no centro da mesa. Tenho uma máquina de café expresso
para fazer aquele café com leite de padaria. Ovo cozido pra Ane, frutas e
queijo branco para a refeição da semana sem pressa de terminar.
Ali conversamos sobre o que passou, sobre as dificuldades do
dia-a-dia e sobre nossos planos de futuro. Por falar em futuro, fiquei
observando como fazemos na mesa para que a Anelise coma bem. Quem já teve uma criança em casa sabe o
quanto é difícil fazer com que ela coma o que consideramos ser o suficiente
para seu crescimento. Qualquer pai ou mãe já viveu aquela situação em que um
biscoito qualquer foi capaz de tirar o apetite de toda uma refeição.
Aí que a gente tem que rebolar. Quem olha de fora acha
ridícula a cena de dois adultos apontanto os setores ainda não explorados no
prato. “Olha o brócoli!”, diz a Natália. “Você não está comendo o feijão”,
indico. É a mania de querer apontar os caminhos, controlar os passos. Quando a
coisa está lenta, apelamos pra competição. “Eu vou terminar primeiro!”, fala a
Natália tentando acabar com a enrolação, enquanto ela acelera o ritmo e diz:
“Não, eu vou acabar primeiro!”. Até que se distrai com qualquer coisa. “Se não
comer tudo, hoje não vai ter sobremesa” é a ameaça final ao prato que foi pouco
mexido. Assim, ensinamos na mesa que o afeto acaba esbarrando no controle
excessivo, com a desculpa do desenvolvimento de quem amamos. Em volta da mesa
damos as primeiras lições de como conseguir o que queremos por meio da
chantagem.
A Natália tem um jeito todo especial para favorecer o
crescimento da Ane quando estamos em volta da mesa. A última que ela colocou em
prática foi fazer carinhas com a comida. Agora, toda refeição tem que ter na
face uma expressão. Já teve palhaco com nariz de tomate cereja e cabelo de
alface picado. Cada prato tem um nome. A Emília tem cabelo de cenoura com
beterraba raladas e nariz de azeitona. A ternura escondida por detrás da
inventividade sem os limites da mesa.
Na casa da Fátima, antes de todas as refeições a família reza
um pai nosso e depois alguém, expontaneamente, faz as preces antes de comer.
Toda vez está descontente com alguém da família, Fátima toma a iniciativa da
oração e inclui um pedido na prece. Usa o costume de maneira sutil, mas manda
recado para o marido, o filho adolescente e até já cutucou a sogra no almoço de
domingo. “Senhor, abençoa o alimento que nós temos hoje em nossa mesa e que não
tenhamos nenhum conflito nesta refeição”, pede Fátima puxando a orelha do
marido e do filho que discutiraram na véspera porque o muleque tinha chegado
tarde em casa. Acontece que na última segunda-feira a Aninha, caçula de sete
anos, tomou a vez na oração e pediu que Nossa Senhora protegesse o chocolate
que ela deixa na geladeira. Desconfiava da empregada e do irmão mais velho.
Sabendo do pecado, não tinha provas para apontar o culpado. Não cabia o
inquérito quando estava em volta da mesa, mas fez valer o recurso disponível.
Se na intimidade da nossa casa usamos a mesa para resolver
nossos relacionamentos familiares, pra fazer a lição de casa e para levar
serviço pra casa, nos escritórios elas servem para reunir opiniões e tomar
decisões. Mas nem em casa, nem no trabalho é possível dizer tudo o que pensamos
todas as vezes que estamos em volta da mesa. A não ser aquela diarista
desbocada que aproveita a reunião para deixar clara a sua opinião.
Quem põe a mesa, tira os pratos
e lava a louça é responsável pelo encontro mais importante do dia. Se o diálogo
em casa está raro, quem cozinha e põe à mesa faz a oportunidade para as interações
mais interessantes que uma família pode ter. Quando uma família ou um grupo senta em volta da mesa, o que
se troca é afeto. A comida estabelece a ocasião. A refeição é apenas a
oportunidade. Afeto é uma afeição direcionada a alguém. Mesmo que eu não
queira, eu afeto.
É quando se demosntra agrado ou desagrado, aprovação ou
desaprovação, simpatia ou antipatia. Em volta da mesa a gente ama e
odeia. Em volta da mesa a gente discute e se reconcilia. Em volta da mesa e
gente tem vontade de se esconder debaixo da toalha de raiva e de subir na mesa
de alegria. É uma interação
que marca os sentimentos de uma maneira permanente. Não existe corretivo que
apague as histórias escritas em volta de uma mesa.
| Pode ser chato almoçar em
família, mas triste mesmo é comer sozinho.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria
Publicado na capa do Caderno Cultura, 26/11/2011, Edição Nº 1175.