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Arte de Weberson Santiago |
Toda pessoa tem uma ou algumas manias
de viagem. A minha é encontrar uma padaria próxima ao lugar onde ficarei
hospedado. Assim que chega a confirmação da reserva do hotel, começo a procurar
a padaria mais perto. Se tem mais de uma na redondeza, encaro o estabelecimento
como um jurado de reality show de gastronomia para escolher a preferida. É como
se só pudesse me sentir em casa na viagem quando encontrasse a padaria.
A outra mania é escrever na padaria.
Já percebi que escrevo melhor no meio do burburinho. Sem contar que o movimento
do lugar e as cenas que observo me fazem refletir e me inspiram. E são duas
cenas que assisti numa padaria que me motivaram a dividir estas manias com você
e a relatar o que eu vi.
Havia viajado para Paris, na França,
para um congresso em que representaria o laboratório onde fiz o meu mestrado e
apresentaria algumas pesquisas. A verba disponível era apenas para um
representante e então viajei sozinho.
Diferentemente dos congressos
brasileiros que tem programação intensa, o congresso francês começava às 9
horas e terminava às 15 horas. Ao final dos trabalhos, pegava o transporte de
volta ao centro, onde fiquei hospedado. No caminho entre a estação e o hotel,
havia uma Boulangerie pequena e muito charmosa. Eu escolhi uma mesa de canto na
calçada como o meu lugar naquela padaria. E ali eu ligava meu notebook, falava
com a família e os amigos, consultava o saldo no banco e contemplava a vista
para a praça. Tudo isso enquanto eu tomava café, chocolate quente ou chá e
experimentava alguma das delícias. O lugar era pequeno, mas a variedade de pães
ficava exposta em cestas pelas paredes e os quitutes expostos nas geladeiras do
balcão de atendimento. Permanecia lá até o pôr do sol e depois ia embora para o
hotel.
Naquela semana, assisti uma variedade
de turistas de diversas nacionalidades passarem pela Boulangerie, mas as duas
cenas que me chamaram a atenção, por incrível que possa parecer, aconteceu com
brasileiros.
Na primeira cena, vi um casal de
aparentes quarenta anos. A mulher havia pedido uma torta e se irritou porque a
torta se esfarelava e ela não conseguia comer. Se ela tentava garfar, a torta
se partia e se colocava o pedaço no garfo, a torta não parava sob o talher. Ela
reclamou tanto para o marido que ele comprou uma briga com a atendente. Eles
xingaram o garçom em português para que ele não entendesse, reclamaram em francês
que a torta estava mal feita, e depois deram risada do constrangimento do
rapaz. Achei desnecessário tudo aquilo, ainda mais por um motivo tão pequeno, e
fiquei com raiva pelo que eles fizeram com o atendente.
Dois dias depois, um senhor de
aproximadamente setenta anos se sentou numa das mesas. Se ele não tivesse feito
uma ligação e falado português com alguém, enquanto combinava alguma coisa, eu
teria pensado que ele era francês. Supus que ele era um brasileiro que morava
lá há bastante tempo. Ele pediu um pão doce. Notei que ele tinha um tremor nas
mãos e, por isso, teve dificuldade para comer. Por duas vezes ele deixou um
pedaço cair no chão. Quando isso aconteceu, colocou o talher no prato,
abaixou-se e pegou o pedaço do chão, depositando-o sob um guardanapo na mesa.
Quando terminou, deixou uma gorjeta para o atendente e levou o guardanapo como
uma trouxinha embrulhando os restos embora.
Aquele dia era a véspera de meu
retorno ao Brasil. Precisei ir embora mais cedo para arrumar as malas, já que
meu voo de volta sairia logo na manhã seguinte. Paguei minha conta e fui
embora. Na saída, avistei adiante aquele senhor com o guardanapo aberto na
palma da mão, esfarelando os restos do seu bolo e jogando no chão para os
pássaros na praça.
O que eu entendi com as duas
situações? Que cada um escolhe o que fazer com as suas migalhas.
| Há
quem releve as limitações do outro, compreendendo-as. Há quem coloque a culpa
de suas próprias limitações nos outros.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 26/12/2015, Edição Nº 1387.
