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Arte de Weberson Santiago |
Ela trabalha há doze anos nas Lojas Pernambucanas. Começou aos dezessete
anos vendendo celulares, até ser contratada para trabalhar vendendo
eletrodomésticos. Nestes doze anos, trabalhou de pé de segunda a sábado e por
muitos domingos. Quando trabalhava aos domingos, recebia uma folga as terças,
quartas ou quintas. Passou doze anos entendendo o que é fim de semana inteiro
de folga apenas durante o mês de férias de cada ano.
Na venda, sempre teve destaque no desempenho. Encarava as metas e
buscava superá-las. Conseguiu a proeza de bater as suas metas de venda
individuais em todos os meses trabalhados nestes doze anos. Quando atingia a sua cota, ajudava os colegas
a atingir as suas, passando as vendas seguintes para eles. Fidelizou uma enorme
quantidade de pessoas na loja e muitos deles passaram a querer comprar apenas com
ela, mas nem por isso ficou imune a aguentar clientes grosseiros e
insatisfeitos com os resultados de suas compras.
Acontece que há cinco anos atrás ela se matriculou na faculdade. Era mãe
de uma criança de dois anos quando começou a fazer Psicologia. Durante os
últimos cinco anos conciliou a pesada jornada de trabalho com um curso noturno
repleto de trabalhos e provas. Arrumou tempo para acompanhar da melhor forma
possível o crescimento da filha, participando de todas as reuniões da escola. E
passou pelos cinco anos sem pegar nenhuma dependência nas matérias, sem deixar
de entregar nenhum trabalho e sem deixar de fazer nenhuma prova, mesmo com a
possibilidade de fazer provas substitutivas quando não tinha folga para estudar
antes da prova. Quando isso acontecia, estudava no horário de almoço. Quando a
filha chegou ao primeiro ano e também passou a fazer provas, estudava com ela
quando chegava da faculdade, tarde da noite, ou lhe tomava as matérias da prova
do dia seguinte com a filha sentada na tampa da privada enquanto tomava seu
banho antes de ir pra faculdade.
Mesmo com todo o excesso de demandas ela deu conta. Deu conta de vender.
Deu conta de acompanhar a filha. Deu conta de cuidar da casa. Deu conta de
estar presente na vida do marido.
Agora ela é Psicóloga. Ser vendedora de eletrodomésticos não faz mais
sentido em sua vida. Vendedora de eletrodomésticos acompanha a vida das
pessoas, faz a lista de casamento e também fica sabendo quando a pessoa se
separa e precisa repor o que ficou com o marido ou com a esposa na separação.
Vendedora de eletrodomésticos entra na intimidade das pessoas, ajuda a decidir
o que ela vai levar para dentro de casa e o quanto isso vai representar dentro
do orçamento do cliente.
Mas vendedor de eletrodomésticos não é Psicólogo e ela quer trabalhar
com a Psicologia. Ela quer tirar o produto do meio da sua relação com seus
clientes. Ela quer a calma de ouvir o cliente sentado em poltronas confortáveis,
escutando com toda a atenção um único cliente, ajudando a pensar nos seus
sentimentos e a tomar decisões que não sejam as decisões de uma compra. Ela
quer trabalhar amenizando sofrimentos, encorajando iniciativas, acompanhando
processos de mudança e de transformação.
Chegou a hora de encaixotar as calças pretas, as camisetas azuis. Chegou
a hora de parar de comprar tênis pretos a cada seis meses para aposentar o
velho surrado. Chegou a hora de sair da rotina pesada, mas confortavelmente
conhecida e previsível. Chegou a hora de deixar o trabalho que lhe permitiu
conquistar tudo o que ela já conquistou até agora, inclusive o diploma de
Psicóloga. Chegou a hora de pendurar o uniforme. Chegou a hora de deixar de ser
a Natália da Pernambucanas.
É preciso aguentar passar pela situação de ficar sem um emprego para que
surjam novas oportunidade de trabalho na área da Psicologia. É preciso
encontrar uma instituição que precise de uma Psicóloga. É preciso montar um
consultório, comprar uma agenda vazia e construir uma nova carteira de
clientes. Está na hora de recomeçar, de começar do zero. Está na hora de fazer
uma coisa que ela nunca fez, mas que está se preparando há cinco anos para
fazer e que é o que ela um dia sonhou que estaria fazendo.
Ela agradece às Casas Pernambucanas por ter aquecido o seu lar durante
esses doze anos, mas ela escolheu deixar a segurança das flanelas, lãs e
cobertores sempre por perto.
Da última vez, quando o frio bateu à porta, não precisou que ele batesse
duas vezes. Ela deixou o frio entrar.
| É
por isso, e por outras coisas mais, que eu me orgulho dela e da sua
trajetória.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 21/03/2015, Edição Nº 1347.