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Arte de Augusto Amato Neto |
Na minha família, existe uma forma muito particular de pais e
filhos trocarem afeto. É a entrega de artigos, o receber recortes de jornal, o
ganhar alguma matéria selecionada.
Meu avô Tino, 93 anos, diz que sua bagagem intelectual saiu
dos jornais. Apesar de ter concluído o
curso de contabilidade antes de se casar e ter feito faculdade de economia
quando já tinha dois filhos, foi debruçado nas páginas do jornal que ele descobriu
oportunidades de negócios, de trocar seus carros e esteve por dentro dos
assuntos mais importantes de cada época.
Desde que começou a trabalhar, antes de fazer carreira como
industrial, foi ajudante de barbeiro. Foi nessa época, aproveitando o tempo
livre no salão, que aprendeu a abrir os braços para as notícias e se tornou um
hábil espiador de manchetes e letras miúdas. Quando não havia tempo, levava o
jornal da véspera para casa e o lia de cabo a rabo.
Quando arrumou seu primeiro emprego assalariado, tornou-se
assinante de um importante jornal, sendo hoje um de seus mais antigos leitores.
Nessas décadas, cada notícia lida que remetia a algum de seus
filhos ou netos, ele fazia o recorte. Muito antes de eu ter nascido, seu Tino
percorre os quatro cantos da notícia com a tesoura para fazer o assunto chegar
a quem interessa. Um cuidado para que nós não fiquemos por fora da última notícia.
Quando eu ingressei no curso de psicologia, passou a separar
artigos de terapeutas, resenhas de novas obras publicadas, notas elucidando a tradução
de um clássico da área.
Mais adiante, depois de treinar minhas habilidades de
cozinhar, quando tive a coragem de apresentar algum prato à família, ele passou
a guardar o caderno culinário do jornal para que eu pudesse aprimorar os modos
de preparo e descobrir novos ingredientes.
E ele fez o mesmo com com os filhos engenheiros, com os netos
que estudaram medicina, com o neto publicitário. E teria feito se na família
tivesse um advogado, um físico ou um dentista.
O meu pai mantêm a mesma tradição, só que de uma maneira um
pouco diferente. Ele é assinante de revistas especializadas na área de gestão
de negócios e recursos humanos. Durante as suas leituras assíduas, faz uma
clipagem dos artigos que são mais interessantes. Ele grifa os trechos mais
importantes da matéria e faz um índice de assuntos em um papel preso na capa.
Oportuno para mim, que tenho uma vida corrida e agitada.
Com todo este cuidado, fica difícil recusar a informação.
Recortes do meu avô e as revistas encaminhadas pelo meu pai são minhas leituras
obrigatórias, o resto é bibliografia complementar.
Trata-se de um compartilhar de informação como se fosse uma troca
de bilhetes, um recado de preocupação.
Esse hábito que nasceu com meu avô e já atravessou duas
gerações é a versão paterna do lembrete da mãe para levar a blusa de frio ou o
guarda-chuva.
Implícito nas entrelinhas das reportagens da vida estão duas
máximas em matéria de afeto masculino. Os homens se protegem da chuva com o
conhecimento. Os homens se aquecem sabendo da última notícia da sua área de
atuação. Meu guarda-chuva e minha colcha são feitos de retalhos de jornal.
| Um filho meu, ao chegar em casa, não me verá sentado na poltrona
com as páginas abertas. Que pena. Na sua memória eu estarei fazendo o mesmo
dando piparotes na tela de um tablet.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 30/03/2013, Edição Nº 1245.
