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Arte de Augusto Amato Neto |
Me deixei seduzir pela novidade. Não resisti à tentação de
experimentar um pão francês nunca antes degustado. Traí a minha padaria
preferida.
Parei o carro na porta e cheguei a hesitar na entrada. Sempre
defendi a fidelidade ao balcão escolhido. Nunca pensei que seria capaz de
enganar meus próprios hábitos.
Levado pelo impulso, no afã do desejo pela novidade. Entrei
pela porta, olhando para os lados, temendo ser visto. Nem havia cometido o
pecado e já me queimava em culpa.
Cruzei o caixa próximo à porta quando vi aquela cena. A
balconista passou a faca serrilhada no sentido transversal pela casca crocante,
dividindo-o em duas metades.
Há quem prefira começar a comer pela parte de cima e deixar a
de baixo por último. Eu prefiro comer primeiro a parte de baixo e deixar a de
cima por último. Para mim, aquela parte que tem a fenda aberta com a lâmina, que
caracteriza o francês, é a metade mais gostosa. Tenho a mania de querer deixar
o melhor para o final.
Já vi cortarem no sentido longitudinal, dividindo o pão em duas metades iguais. Não
concordo, não vejo graça em começar e terminar comendo duas partes iguais. Veja
bem, não sou contra quem come meio pãozinho, mas que corte na perpendicular e
depois no sentido transversal. Ainda assim terá duas partes diferentes, a de
baixo e a de cima para completar o ritual. Mas vamos deixar o procedimento e
voltar ao dia que cometi o engano.
Quando a balconista besuntou a metade do recém-saído-da-fornada
com manteiga, ela derreteu-se automaticamente entre os relevos desiguais dos
miolos. Eu não resisti. Pedi um e me lambuzei.
Não teve como passar batido, omitir a prova. Deixei minhas
digitais amanteigadas nos guardanapos de papel.
Rubem Braga narrou em crônica publicada em 1955, a crueldade
envolvida na morte de um carneirinho para se transformar em diversos pratos
degustados em reunião de família. Depois de provar o sabor das iguarias
concluiu que o crime compensa.
O mesmo não aconteceu com a minha infidelidade. O pecado não
compensou.
O pão não estava fresquinho, ficou dando rodadelas em minha
boca com sua textura macia. Se eu usasse dentadura, poderia tê-la esquecido em
casa e ainda assim teria deglutido o famigerado pãozinho.
Não bastasse o pão murcho, a moça esguia e magra economizou
na manteiga. Essa foi outra lição. Não confie nas balconistas magrelas. Nunca
terão lambido uma tampa de alumínio do potinho de iogurte, muito menos saberão
lamber a faca com resto do requeijão sem cortar a língua.
E devo confessar sussurrando, para não passar muita vergonha,
que de longe o pão parecia ser o mais crocante que já vi.
Devo vociferar minha culpa, para quem sabe assim não me
seduza por qualquer quitute acenando na vitrine de uma padaria qualquer. Fui
pensando que poderia descobrir um gostinho diferente e experimentei o sabor
amargo da traição.
| Já adianto que até a publicação desta crônica terei recaído. Nunca
serei capaz de mudar de calçada diante de uma padaria. No mínimo, vou torcer
o pescoço e dar uma última espiada no pão que ficou pra trás e que não
experimentei.
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Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 19/01/2013, Edição Nº 1235.
